domingo, 9 de setembro de 2007

Prática Pedagógica - Programa 4

Organizando as classes de alfabetização: Processos e métodos

MARIA DAS GRAÇAS DE CASTRO BREGUNCI1

A metodologia da alfabetização: trajetória de alguns princípios permanentes

Mudanças conceituais ocorridas no campo da alfabetização trazem, como conseqüência, mudanças nas decisões metodológicas e nos procedimentos didáticos a ela relacionados. Como a ampliação do conceito de alfabetização vem sendo objeto desta série de textos, o foco desta abordagem será a caracterização do estado atual da discussão sobre a metodologia da alfabetização como base para uma reflexão sobre a organização do trabalho nessa área.
Historicamente, as discussões sobre a alfabetização escolar, no Brasil, se centraram na eficácia de processos e métodos, prevalecendo, até os anos 80, uma polarização entre processos sintéticos e analíticos, direcionados ao ensino do sistema alfabético e ortográfico da escrita.
Os primeiros métodos aplicados ao ensino da língua escrita perten­cem a uma vertente que valoriza o processo de síntese. Nela se incluem os métodos de soletração, o fônico, o silábico, tendências ainda fortemente presentes nas propostas didáticas atuais. Tais métodos privilegiam os processos de decodificação, as relações entre fonemas (sons ou unidades sonoras) e grafemas (letras ou grupos de letras) e uma progressão de unidades menores (letra, fonema, sílaba) a unidades mais complexas (palavra, frase, texto). Embora focalizem capacidades essenciais ao processo de alfabetização – sobretudo a consciência fono­ló­gi­ca e a aprendizagem do sistema convencional da escrita – tais méto­dos, quando utilizados parcialmente e de forma exclusiva, apresentam limitações: não exploram as complexas relações entre fala e escrita, suas semelhanças e diferenças; além disso, pela ênfase que atribuem à decodificação, resultam, muitas vezes, em propostas que descontextualizam a escrita, seus usos e funções sociais, enfatizando situações artificiais de treinamento de letras, fonemas ou sílabas.
Outra vertente de métodos valoriza o processo de análise e a compreensão de sentidos, propondo uma progressão diferenciada: de unidades mais amplas (palavra, frase, texto) a unidades menores (sílabas ou sua decomposição em grafemas e fonemas). São exemplos dessa abordagem os métodos de palavração (palavra decomposta em sílabas), de sentenciação (sentenças decompostas em palavras) e o global de contos (textos considerados como pontos de partida, até o trabalho em torno de unidades menores) – tendências que também persistem nas práticas docentes atuais. Esses métodos contemplam algumas das capacidades essenciais ao processo de alfabetização – sobretudo o estímulo à leitura de unidades com sentido, pelo reconhecimento global das mesmas. Entretanto, quando incorporados de forma parcial e absoluta, acabam enfatizando construções artificiais e repetitivas de palavras, frases e textos, muitas vezes apenas a serviço da repetição e da memorização, com objetivo de manter controle mais rígido da seqüência do processo e das formas de interação gradual da criança com a escrita.
Nas últimas três décadas assistiu-se a um abandono dessa discussão sobre a eficácia de processos e métodos de alfabetização, que passaram a ser identificados como propostas “tradicionais ” ou excessivamente diretivas. Passou a ocupar lugar central a discussão sobre a psicogênese da aquisição da escrita, uma abordagem de grande impacto conceitual no campo da alfabetização, sistematizada por Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1985) e vários outros teóricos e pesquisadores. Tais mudanças conceituais, traduzidas no ideário “Construtivista ”, reverteram a ênfase anterior no método de ensino para o processo de aprendizagem da criança que se alfabetiza e para suas concepções progressivas sobre a escrita, entendida como um sistema de representação. Além disso, passou-se a valorizar o diagnóstico dos conhecimentos prévios dos alunos e a análise de seus erros como indicadores construtivos de seus processos cognitivos e hipóteses de aprendizagem. Outra implicação fundamental passou a ser o deslocamento da ênfase anterior na alfabetização para uma valorização do ambiente alfabetizador e do conceito mais amplo de letramento – já definido, nesta série, como a progressiva inserção da criança em práticas sociais e materiais reais que envolvem a escrita e a leitura. Embora tais contribuições tenham se incorporado como conquistas importantes na trajetória da alfabetização escolar, alguns problemas e dilemas se instalaram a partir da excessiva centração nas dimensões conceituais, em detrimento da sistematização metodológica do ensino desse objeto em construção. Como afirma SOARES (2002), a ênfase na faceta psicológica da alfabetização obscureceu sua faceta lingüística fonética e fonológica; além disso, a ênfase na dimensão do letramento obscureceu a dimensão da alfabetização como processo de aquisição do sistema convencional de uma escrita alfabética e ortográfica.Desafios atuais quanto às escolhas metodológicas para a alfabetização
À luz desses dilemas, como poderia ser encaminhada, atualmente, a discussão sobre uma didática da alfabetização? Embora a questão metodológica não possa merecer o pesado tributo de responsável exclusiva pelo nosso fracasso em alfabetizar, certamente seu lugar é considerável e necessita ser redimensionado. Nas últimas décadas, não apenas as mudanças conceituais em torno da alfabetização ampliaram seu significado, como também novos problemas e exigências se agregaram ao trabalho nesse campo pedagógico. O momento exige a superação de polarizações entre caminhos ou movimentos exclusivos e a busca de equilíbrio de princípios metodológicos que são considerados permanentes, indispensáveis e indissociáveis como dimensões constitutivas e simultâneas da alfabetização e do letramento: a) os princípios de decodificação e de organização do sistema alfabético-ortográfico da escrita, incluindo o domínio das relações entre fonemas e grafemas, das regularidades e irregularidades ortográficas; b) os princípios de compreensão, reconhecimento global e construção de sentidos em contextos de usos sociais da escrita e da leitura; c) os princípios pertinentes à progressão das capacidades das crianças, nos diversos campos já descritos em textos anteriores, com ênfase em intervenções didáticas que propiciem avanços de aprendizagem.
A multiplicidade de métodos e sua combinação simultânea em função dos diversos momentos do ensino inicial da escrita e da leitura é, atualmente, uma tendência internacio­nal. Um bom ponto de partida consiste em reconhecer, portanto, as deficiências de ca­da proposta e identificar os princípios permanentes que devem ser preservados e articulados simultaneamente. Mas a escolha do “melhor ” método não poderá ser parcial e exclusiva, devendo se regular por vários critérios: a) a integração de princípios teórico-me­to­do­ló­gicos já sugeridos pela produção teórica e pela pesquisa nessa área; b) o apoio em livros e materiais didáticos que ajudem a sistematizar, de forma coerente e consistente, o trabalho pedagógico em torno da alfabetização; c) a socialização de experiências ou práticas de sucesso de alfabetizadores; d) o diagnóstico dos processos vivenciados pelos alunos, para adequadas escolhas quanto às intervenções necessárias às suas progressões.
Percebe-se, assim, que as decisões metodológicas relacionadas à alfabetização extra­polam a mera escolha de métodos: envolvem um conjunto de procedimentos pertinentes à preparação da escola e à organização das classes de alfabetização, ao estabelecimento de planejamentos e de rotinas necessários à implementação de um ambiente alfabetizador. Esses serão os focos do próximo tópico.

O planejamento e a organização do trabalho em torno da alfabetização

As dimensões e os conteúdos pertinentes à alfabetização passaram por ampliações progressivas, cada vez mais complexas, como se vem enfatizando ao longo dessas reflexões. Trata-se, hoje de um campo que recebe contribuições de diversas ciências e de linhas de pesquisa cada vez mais valorizadas do ponto de vista político e pedagógico. Por isso mesmo, tal processo não pode ser conduzido de forma aleatória e assistemática, limitado a vivências espontâneas dos alunos ou a práticas solitárias dos professores. É nesse sentido que emerge a importância do planejamento da organização das classes de alfabetização e do trabalho didático a ser desenvolvido. O planejamento é o instrumento, por excelência, capaz de assegurar o diagnóstico das capacidades e conhecimentos prévios dos alunos, as metas e meios para a sistematização de aprendizagens e práticas de ensino, os instrumentos de avaliação do processo e a elaboração de novas estratégias para a solução de problemas detectados. Exige não só esforço docente individual como também trabalho coletivo e compartilhado; assim, o planejamento estabelece princípios de reciprocidade de cada profissional com seus pares, possibilitando a consolidação da autonomia dos professores e a progressiva reconstrução do projeto pedagógico da própria escola.

Alguns requisitos são fundamentais em um planejamento efetivamente voltado para a sistematização do trabalho em torno da alfabetização:

a) criar condições e tempos escolares destinados ao planejamento, ao diagnóstico, à avaliação e à reelaboração de propostas, buscando-se a progressiva institucionalização de espaços coletivos tais como seminários ou semanas de planejamento, de integração com a comunidade, de escolha de livros didáticos, entre outras possibilidades;
b) estabelecer e compartilhar metas e objetivos, envolvendo professores, alunos e pais, nos processos de sua avaliação e de sua reorientação;
c) definir meios para alcançar objetivos, organizar o processo, registrar e socializar atividades realizadas.

Além da definição de objetivos e metas, é necessário investir nos meios para sua imple­mentação. A organização das atividades em torno da alfabetização deverá levar em conta:

a) a progressão de níveis do trabalho pedagógico, em função dos níveis de aprendizagem dos alunos e da natureza das atividades, envolvendo conceitos e procedimentos pertinentes aos diversos componentes do aprendizado da língua escrita: a compreensão e a valorização da cultura escrita, a apropriação do sistema de escrita, a oralidade, a leitura e a produção de textos escritos. Dependendo do nível atingido pela classe, por grupos ou duplas de alunos, todo o planejamento poderá ser reorientado, em busca de outras alternativas de métodos, de materiais didáticos e de reagrupamento de alunos, sempre tendo como meta mais ampla sua progressiva autonomia em relação aos usos da língua escrita.
b) a criação de um ambiente alfabetizador, ou de um contexto de cultura escrita oferecido pelas formas de organização da sala e de toda a escola, capaz de disponibilizar aos alunos a familiarização com a escrita e a interação com diferentes tipos, gêneros, portadores e suportes, nas mais diversas formas de circulação social de textos. A exposição de livros, dicionários, revistas, rótulos, publicidade, notícias do ambiente escolar e de periódicos da comunidade ou do município, cartazes, relatórios, registros de eleições e muitas outras possibilidades permitem a inserção dos alunos em práticas sociais de letramento, ultrapassando formas artificiais de etiquetagem ou de treinamento da escrita em contextos estritamente escolares.
c) o estabelecimento de rotinas diárias e semanais, capazes de oferecer ao professor um princípio organizador de seu trabalho, desde que atenda a dois critérios essenciais: a variedade e a sistematização. Uma rotina necessita, em primeiro lugar, propiciar diversificação de experiências e ampliação de contextos de aplicação. Em segundo lugar, precisa oferecer um contexto de previsibilidade de atividades, para que os próprios alunos se organizem, consolidem aprendizagens e avancem em seus espaços de autonomia. Nesse sentido, pode ser bastante produtiva a previsão diária e semanal de atividades voltadas para os eixos da leitura, da escrita, da oralidade, das atividades lúdicas e especializadas, levando em conta o melhor momento de sua inserção (início, meio ou final do turno) e a melhor configuração grupal para sua realização (grupos que se familiarizam com determinados conteúdos ou grupos que já se encontram em patamares mais consolidados de aprendizagem). Essa flexibilidade pode conferir maior potencial à proposição de rotinas, como elementos que ajudam o professor a melhor conhecer seus alunos e a monitorar as modificações necessárias para que o planejamento inicial não se desencaminhe das metas mais relevantes inicialmente projetadas.

Palavras finais

Este texto se centrou na caracterização do atual estado da discussão sobre a metodologia da alfabetização, a partir de uma revisão das concepções historicamente produzidas em torno de processos e métodos, apontando confrontos, lacunas e permanências de alguns princípios já consolidados na área. A intenção central foi a de estimular uma reflexão em direção ao equilíbrio, à integração e à articulação de propostas metodológicas que possam dar conta da complexidade da alfabetização e das progressivas exigências em torno de seu ensino. Como conseqüência dessa proposta, um segundo nível de discussão se voltou para a necessidade de preparação efetiva da escola e da sala de aula para a alfabetização, através de um planejamento criterioso dos ambientes de alfabetização e das rotinas necessárias no trabalho cotidiano de professores e alunos. Dessa forma, pretendeu-se alargar o próprio conceito de método, entendido, nesta abordagem, como um conjunto de procedimentos e de vários níveis de decisão responsáveis pela sistematização, na escola fundamental, da tarefa de alfabetizar e letrar nossas crianças.

Referências bibliográficas

FERREIRO, Emília & TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da Língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
FRADE, Isabel Cristina A . S. Alfabetização hoje: onde estão os métodos? Presença Pedagógica. Belo Horizonte: Dimensão, v. 9, n.50, mar./abr. 2003.
LERNER, Delia & PIZANI, Alicia. A aprendizagem da língua escrita na escola; reflexões sobre a prática pedagógica construtivista. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
RIZZO, Gilda. Estudo comparativo dos métodos de ensino da leitura e da escrita. São Paulo: América, 1986.
SOARES, Magda. Alfabetização e Letramento. São Paulo: Contexto, 2002.
TEBEROSKY, Ana & COLOMER, Teresa. Aprender a ler e escrever; uma proposta construtivista. Porto Alegre: Artmed, 2003.

Notas:
1 Professora aposentada da Faculdade de Educação da UFMG. Pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale).



SALTO PARA O FUTURO / TV ESCOLAWWW.TVEBRASIL.COM.BR/SALTO

Prática Pedagógica - Programa 3

Programa 3

O que é ser alfabetizado e letrado?

MARIA DA GRAÇA COSTA VAL1

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO

Conceituação

A apropriação da escrita é um processo complexo e multifacetado, que envolve tanto o domínio do sistema alfabético-ortográfico quanto a compreensão e o uso efetivo e autônomo da língua escrita em práticas sociais diversificadas. A partir da compreensão dessa complexidade é que se tem falado em alfabetização e letramento como fenômenos diferentes e complementares.
De início, pode-se definir alfabetização como o processo específico e indispensável de apropriação do sistema de escrita, a conquista dos princípios alfabético e ortográfico que possibilitam ao aluno ler e escrever com autonomia. Noutras palavras, alfabetização diz respeito à compreensão e ao domínio do chamado “código” escrito, que se organiza em torno de relações entre a pauta sonora da fala e as letras (e outras convenções) usadas para representá-la na escrita.
Já letramento pode ser definido como o processo de inserção e participação na cultura escrita. Trata-se de um processo que tem início quando a criança começa a conviver com as diferentes manifestações da escrita na sociedade (placas, rótulos, embalagens comerciais, revistas, etc.) e se prolonga por toda a vida, com a crescente possibilidade de participação nas práticas sociais que envolvem a língua escrita (leitura e redação de contratos, de livros científicos, de obras literárias, por exemplo).
O termo letramento foi criado, portanto, quando se passou a entender que, nas sociedades contemporâneas, é insuficiente o mero aprendizado das “primeiras letras”, e que integrar-se socialmente, hoje, envolve também “saber utilizar a língua escrita nas situações em que esta é necessária, lendo e produzindo textos”. Essa nova palavra veio para designar “essa nova dimensão da entrada no mundo da escrita”, que se constitui de um “conjunto de conhecimentos, atitudes e capacidades necessários para usar a língua em práticas sociais” (cf. Batista, 2003).
É possível encontrar pessoas que passaram pela escola, aprenderam técnicas de decifração do código escrito e são capazes de ler palavras e textos simples, curtos, mas não são capazes de se valer da língua escrita em situações sociais que requerem habilidades mais complexas. Essas pessoas são alfabetizadas, mas não são letradas. Essa condição é particularmente dolorosa e indesejável, embora freqüente, dentro da própria escola, porque acarreta dificuldades para o aprendizado dos diferentes conteúdos curriculares, ou mesmo inviabiliza esse aprendizado.
Por isso é que se tem afirmado que alfabetização e letramento são processos diferentes, cada um com suas especificidades, mas complementares, inseparáveis e ambos indispensáveis. O desafio que se coloca hoje para os professores é o de conciliar esses dois processos, de modo a assegurar aos alunos a apropriação do sistema alfabético-ortográfico e a plena condição de uso da língua nas práticas sociais de leitura e escrita.
Entretanto, o surgimento do conceito de letramento, bem como a difusão e o emprego desse termo – em documentos oficiais como os PCN, em cursos de especialização de professores, em estudos e discussões acadêmicas –, têm suscitado polêmicas e equívocos (por exagero ou por simplificação), que é bom tentar esclarecer.
Pode-se dizer que a fonte desses equívocos e polêmicas é a não compreensão de que os dois processos são complementares, e não alternativos. Explicando: não se trata de escolher entre alfabetizar ou letrar; trata-se de alfabetizar letrando. Quando se orienta a ação pedagógica para o letramento, não é necessário, nem recomendável, que, por isso, se descuide do trabalho específico com o sistema de escrita. Noutros termos: o fato de valorizar em sala de aula os usos e as funções sociais da língua escrita não implica deixar de tratar sistematicamente da dimensão especificamente lingüística do “código”, que envolve os aspectos fonéticos, fonológicos, morfológicos e sintáticos. Do mesmo modo, cuidar da dimensão lingüística, visando à alfabetização, não implica excluir da sala de aula o trabalho voltado para o letramento. Outra fonte de equívocos é pensar os dois processos como seqüenciais, isto é, vindo um depois do outro, como se o letramento fosse uma espécie de preparação para a alfabetização, ou, então, como se a alfabetização fosse condição indispensável para o início do processo de letramento.
Considerando-se que os alfabetizandos vivem numa sociedade letrada, em que a língua escrita está presente de maneira visível e marcante nas atividades cotidianas, inevitavelmente eles terão contato com textos escritos e formularão hipóteses sobre sua utilidade, seu funcionamento, sua configuração. Excluir essa vivência da sala de aula, por um lado, pode ter o efeito de reduzir e artificializar o objeto de aprendizagem que é a escrita, possibilitando que os alunos desenvolvam concepções inadequadas e disposições negativas a respeito desse objeto. Por outro lado, deixar de explorar a relação extra-escolar dos alunos com a escrita significa perder oportunidades de conhecer e desenvolver experiências culturais ricas e importantes para a plena integração social e o exercício da cidadania.
Assim, entende-se que a ação pedagógica mais adequada e produtiva é aquela que contempla, de maneira articulada e simultânea, a alfabetização e o letramento. No próximo item, vamos apresentar, rapidamente, algumas possibilidades de se desenvolver esse trabalho integrado em sala de aula.

Alfabetização e letramento na sala de aula

A reflexão sobre como integrar alfabetização e letramento em sala de aula vai se organizar em torno de quatro componentes do aprendizado da escrita: (1) a compreensão e valorização da cultura escrita; (2) a apropriação do sistema de escrita; (3) a leitura; (4) a produção de textos escritos.

1. Compreensão e valorização da cultura escrita

Vivemos num tipo de sociedade que costuma ser chamada de “grafocêntrica”, porque, no dia-a-dia dos cidadãos, a escrita está presente em todos os espaços, a todo momento, cumprindo diferentes funções. Ter clareza quanto à diversidade de usos e funções da escrita e às incontáveis possibilidades que ela abre é importante tanto do ponto de vista conceitual e procedimental, para que o aluno seja capaz de fazer escolhas adequadas, ao participar das práticas sociais de leitura-escrita, quanto também do ponto de vista atitudinal, porque o interesse e a própria disposição positiva para o aprendizado tendem a se acentuar com a compreensão da utilidade e relevância daquilo que se aprende.
Fora da escola, esse saber é adquirido, em geral, quando as crianças têm acesso aos diversos suportes de escrita e participam de práticas de leitura e de escrita dos adultos. Entretanto, sabemos que muitos alunos chegam à escola sem ter tido oportunidade de conviver e se familiarizar com os meios sociais de circulação da escrita. Nessas condições, não é de surpreender que façam hipóteses inusitadas sobre a natureza, as funções e o uso desses materiais, inclusive daqueles mais simples e indispensáveis ao dia-a-dia na escola, como livros e cadernos. Por isso é que esse conhecimento deve ser trabalhado didaticamente em sala de aula, oferecendo possibilidades para que os alunos observem e manuseiem muitos textos, pertencentes a gêneros diversificados, presentes em diferentes suportes, e, ao lado disso, procurando orientar a exploração desse material, explicitando informações desconhecidas, mas sem deixar de valorizar os conhecimentos prévios das crianças e de favorecer deduções e descobertas. Essas práticas terão repercussão positiva no processo de apropriação do sistema de escrita, mas também, e principalmente, na leitura e na produção de textos escritos.

2. Apropriação do sistema de escrita

Para compreender as regras que orientam a leitura e a escrita, os alunos precisam desenvolver conhecimentos e capacidades diversas, relativas à natureza e ao funcionamento do sistema alfabético e da ortografia da Língua Portuguesa, mas também relativas ao uso geral da escrita. Nesses momentos, é possível e produtivo aliar alfabetização e letramento, propondo observações e reflexões sobre as convenções do sistema de escrita a partir do exame e da produção de textos escritos. Alguns exemplos disso serão apontados a seguir.
O alinhamento e a direção da escrita, bem como a função de segmentação dos espaços em branco, são conhecimentos básicos indispensáveis, que muitos aprendizes iniciantes podem não ter tido oportunidade de observar e identificar como convenções a serem seguidas. Por isso, esses conhecimentos precisam ser abordados sistematicamente na escola. Um procedimento útil para familiarizar os alunos com as marcas de segmentação da escrita, adotado por muitos professores no começo do processo de alfabetização, é ler em voz alta para as crianças, apontando cada palavra lida e os sinais de pontuação no final das frases. Outra maneira de trabalhar nesse sentido é, ao fazer a leitura oral em sala de aula, solicitar que os próprios alunos identifiquem os diferentes marcadores de espaço (espaçamentos entre as palavras, pontuação, parágrafos). A exploração desses marcadores, aliada ao processo de leitura, permite que os alunos descubram diferenças entre a segmentação da fala e a da escrita, o que lhes será útil para o domínio da ortografia, da morfossintaxe escrita, da pontuação e da paragrafação, em momentos posteriores de seu aprendizado.
Outra capacidade inicial imprescindível é conhecer e compreender o alfabeto: (i) identificar e saber os nomes das letras, entender que o nome de cada letra tem relação com pelo menos um dos fonemas que ela pode representar na escrita (as exceções – h, y, w, por exemplo – são poucas e de uso menos freqüente); (ii) compreender que as letras desempenham uma função no sistema, que é a de preencher um determinado lugar na escrita das palavras. (Isso significa conhecer a categorização gráfica e funcional das letras, entendendo que determinadas letras devem ser usadas para escrever determinadas palavras, em determinada ordem). Apesar das diferentes formas gráficas das letras em nosso alfabeto (maiúsculas, minúsculas, imprensa, cursiva), uma letra permanece a mesma porque exerce a mesma função no sistema de escrita, ou seja, as letras têm valores funcionais fixados pela história do alfabeto e, principalmente, pela ortografia das palavras em cada língua. Assim, uma das implicações do princípio de identidade funcional das letras para o processo de alfabetização é o aluno aprender que não pode escrever qualquer letra em qualquer posição numa palavra, porque as letras representam fonemas, os quais aparecem em posições determinadas nas palavras.
O investimento nessa questão tão específica do processo de alfabetização pode ser feito em co-operação com o trabalho voltado para o letramento. Por exemplo, o estudo do alfabeto feito com a apresentação de todas as 26 letras, seguindo a ordem alfabética, pode facilitar ao aluno uma visão do conjunto, a compreensão do todo e a distinção de cada letra, além de lhe propiciar familiarizar-se com um conhecimento de grande utilidade social, visto que, em nossa sociedade, muitos escritos se organizam pela ordem alfabética. Outro exemplo é, mantendo o foco nas letras como unidades de aprendizado, propor aos alunos iniciantes a produção de textos simples (etiquetas, crachás, listas), de modo a possibilitar-lhes, por um lado, operar direta e produtivamente com a categorização gráfica e funcional das letras e, por outro, experienciar a escrita de textos que têm efetiva aplicação e utilidade na vida social.
Apropriar-se do sistema de escrita depende fundamentalmente de compreender o princípio básico de que as “letras” representam “sons”, ou, em termos técnicos mais apropriados, os grafemas representam fonemas. A conquista desse conhecimento fundamental se realiza quando a criança começa a tentar ler e escrever relacionando cada “letra” a um “som”, cada “som” a uma “letra”, porque entendeu que o princípio geral que regula a escrita é a correspondência entre “som” e “letra”. Isso significa que ela compreendeu a natureza alfabética do sistema de escrita.
Conquistado o princípio alfabético, é preciso que o aluno aprenda as regras de correspondência entre grafemas e fonemas na ortografia da Língua Portuguesa. Essas regras de correspondência são variadas, ocorrendo relações mais simples e regulares e outras mais complexas, que dependem da posição do grafema/fonema na palavra (são posicionais), ou dos grafemas/fonemas que vêm antes ou depois (são contextuais). Na escrita do Português há pouquíssimos casos em que há apenas uma correspondência entre um grafema e um fonema. Mas, mesmo assim, há padrões básicos nos valores atribuídos aos grafemas, há regras, que o professor alfabetizador precisa compreender para saber propor atividades adequadas a seus alunos e para interpretar com pertinência as dificuldades que eles apresentam. É importante que o professor, pela exploração sistemática, contrapondo exemplos adequados, possibilite aos alunos observarem, analisarem e entenderem as correspondências, que, apesar de dependentes de posição ou de contexto, são regulares e obedecem a padrões apreensíveis. A superação das dificuldades pode advir de situações didáticas que permitam aos alunos enxergar e entender as regularidades que há por trás das complicações.
No processo de aprendizagem, a compreensão das relações alfabéticas e ortográficas pode se beneficiar da exploração de relações semânticas e contextuais significativas para as crianças. Elementos do texto, de seu suporte e de sua esfera de circulação podem ser usados pelos alunos como pistas para inferir palavras que devem ser lidas ou grafias que devem ser escritas. Há dificuldades ortográficas que podem ser sistematizadas e tornadas mais fáceis para os alunos com a ajuda de conhecimentos da morfologia da língua (por exemplo, as regularidades de sufixos e de desinências verbais). Mas há, também, “irregularidades ortográficas” que só serão aprendidas por memorização, sobretudo em função da freqüência das palavras nos textos escritos que as crianças vão ler e escrever.
Diante da complexidade do objeto de aprendizagem, é de se esperar que algumas dificuldades ortográficas permaneçam ao longo dos primeiros anos escolares e tenham que ser retomadas. É importante que o professor procure estudar e ter clareza sobre as particularidades de cada tipo de problema, para poder conduzir adequadamente seu trabalho e dimensionar com equilíbrio suas expectativas.

3. Leitura

A leitura é uma atividade que se realiza individualmente, mas que se insere num contexto social, envolvendo disposições atitudinais e capacidades que vão desde a decodificação do sistema de escrita até a compreensão, a produção de sentido para o texto lido. Abrange, pois, desde capacidades desenvolvidas no processo de alfabetização stricto sensu até capacidades que habilitam o aluno à participação ativa nas práticas sociais letradas e contribuem para o seu letramento.
A compreensão dos textos pela criança é a meta principal do ensino da leitura. Ler com compreensão inclui, além da compreensão linear, a capacidade de fazer inferências. A compreensão linear depende da capacidade de construir um “fio da meada ” que unifica e inter-relaciona os conteúdos lidos, compondo um todo coerente (por exemplo, ao acabar de ler uma narrativa, ser capaz de dizer quem fez o quê, quando, como, onde e por quê). Já a capacidade de produzir inferências diz respeito a “ler nas entrelinhas”, compreender os subentendidos, os não-ditos, realizando operações como associar elementos diversos, presentes no texto ou que fazem parte das vivências do leitor, para compreender informações ou inter-relações entre informações que não estejam explicitadas no texto.
Como a capacidade de compreensão não vem automaticamente nem plenamente desenvolvida, precisa ser exercitada e ampliada, em diversas atividades, que podem ser realizadas antes mesmo que as crianças tenham aprendido a decodificar o sistema de escrita. O professor contribui para o desenvolvimento dessa capacidade dos alunos quando: a) lê em voz alta e comenta ou discute com eles os conteúdos e usos dos textos lidos; b) proporciona a eles familiaridade com gêneros textuais diversos (histórias, poemas, trovas, canções, parlendas, listas, agendas, propagandas, notícias, cartazes, receitas culinárias, instruções de jogos, regulamentos), lendo para eles em voz alta ou pedindo-lhes leitura autônoma; c) aborda as características gerais desses gêneros (do que eles costumam tratar, como costumam se organizar, que recursos lingüísticos costumam usar); d) instiga os alunos a prestarem atenção e explicarem os não-ditos do texto, a descobrirem e explicarem os porquês, a explicitarem as relações entre o texto e seu título.
Saber reconhecer diferentes gêneros textuais e identificar suas características gerais favorece bastante o trabalho de compreensão, porque orienta adequadamente as expectativas do leitor diante do texto. O professor contribui para isso quando propõe, antes da leitura, perguntas que suscitam a elaboração de hipóteses interpretativas, que serão verificadas (e confirmadas ou não) durante e depois da leitura: “de que assunto trata esse texto?”, “é uma história?”, “é uma notícia?”, “é triste?”, “é engraçado?”, “o que vai acontecer?”. Até o leitor iniciante pode tentar adivinhar o que o texto diz, pela suposição de que alguma coisa está escrita, pelo conhecimento do seu suporte (livro de história, jornal, revista, folheto, quadro de avisos, etc.) e de seu gênero, pelo conhecimento de suas funções (informar, divertir, etc.), pelo título, pelas ilustrações.
Outras atividades adequadas para desenvolver a capacidade de compreensão e que podem ter início desde antes da alfabetização stricto sensu, porque podem ser realizadas a partir da leitura em voz alta feita pelo professor, são as que levam os alunos a partilhar sua emoção e sua compreensão com os colegas, avaliando e comentando afetivamente o texto, resumindo-o, explicando-o, fazendo extrapolações (isto é, projetando o sentido do texto para outras vivências, outras realidades). Resumir, explicar, discutir e avaliar o texto requer tê-lo compreendido globalmente, ter interligado informações e produzido inferências; fazer extrapolações pertinentes – sem perder o texto de vista – contribui para o aprendizado afetivo e atitudinal de descobrir que as coisas que se lêem nos textos podem fazer parte da nossa vida, podem ter utilidade e relevância para nós.

4. Produção escrita

O domínio da escrita, assim como o da leitura, abrange capacidades que são adquiridas no processo de alfabetização e outras que são constitutivas do processo de letramento, incluindo desde as primeiras formas de registro alfabético e ortográfico até a produção autônoma de textos. A escrita na escola, assim como nas práticas sociais fora da escola, se realiza situada num contexto, se orienta por algum objetivo, tem alguma função e se dirige a algum leitor. O objetivo geral do ensino de redação é proporcionar aos alunos o desenvolvimento da capacidade de produzir textos escritos de gêneros diversos, adequados aos objetivos, ao destinatário e ao contexto de circulação. O trabalho nesse sentido pode ser feito na sala de aula mesmo antes que as crianças tenham aprendido a escrever, porque o professor estará orientando seus alunos para a compreensão e a valorização dos diferentes usos e funções da escrita, em diferentes gêneros e suportes, quando: a) ler em voz alta para eles histórias, notícias, propaganda, avisos, cartas circulares para os pais, etc.; b) trouxer para a sala de aula textos escritos de diferentes gêneros, em diversos suportes ou portadores, e os explorar com os alunos (para que servem, a que leitores se destinam, onde se apresentam, como se organizam, de que tratam, que tipo de linguagem utilizam); c) fizer uso da escrita na sala de aula, com diferentes finalidades, envolvendo os alunos (registro da rotina do dia no quadro de giz, anotação de decisões coletivas, planejamento e organização de trabalhos, jogos, festas); d) orientar a produção coletiva de textos, em que os alunos sugerem e discutem o que vai ser escrito e o professor registra a forma escolhida no quadro de giz.
Para realizar esse trabalho é importante compreender que uma palavra qualquer – como, por exemplo, um nome próprio – pode ser um texto, se for usada numa determinada situação para produzir um sentido. Com essa compreensão, pode-se propor às crianças produzir textos escritos desde os primeiros dias de aula. Por exemplo: copiar o próprio nome ganha razão de ser quando se conjuga à confecção de um crachá que será efetivamente usado e permitirá aos colegas memorizarem a escrita dos nomes uns dos outros. Distinguir e aprender a traçar as letras e memorizar a ordem alfabética constituem um aprendizado cuja utilidade se manifesta na organização de agenda de telefones dos alunos da turma, ou de um caderno de controle de empréstimo e devolução de livros de história, ou de listas de alunos escalados para realizar determinadas tarefas. Atividades como essas envolvem, simultaneamente, aprendizagens na direção da alfabetização e do letramento, porque requerem habilidade motora, perceptiva e cognitiva no traçado das letras e na disposição do escrito no papel, convidam à reflexão sobre o sistema de escrita e suscitam questões sobre a grafia das palavras, ao mesmo tempo em que dão oportunidade às crianças de vivenciarem importantes funções da escrita.
A necessária capacidade de dominar o sistema ortográfico pode ser associada à produção de textos escritos com função social bem definida. Por exemplo, cartazes, avisos, murais são gêneros textuais que, em razão de seus objetivos e de sua circulação pública, devem apresentar a ortografia padrão. Assim, se as crianças se envolverem na produção, individual ou coletiva, de textos como esses, tendo em mente as circunstâncias em que serão lidos, compreenderão que, nesses casos, é justificável dedicar atenção especial à grafia das palavras.
Saber planejar a escrita do texto considerando o tema central e seus desdobramentos, de modo que ele pareça, para seus leitores, sensato, “lógico”, bem encadeado e sem contradições, é outra capacidade importante a ser desenvolvida na escola, porque a organização e o encadeamento dos textos da conversa cotidiana, que as crianças conhecem, são diferentes do que se espera no caso de textos escritos, principalmente se tiverem circulação pública. Essa capacidade pode começar a ser desenvolvida na produção coletiva de diversos gêneros, em textos mais longos ou mais curtos, que o professor escreve no quadro de giz a partir das sugestões dos alunos. As crianças precisam aprender que, no planejamento da coerência do texto escrito, é sempre necessário levar em conta para quê e para quem se está escrevendo e em que situação o texto será lido. Normalmente, esses elementos é que orientam o processo de escrita e é bom que os alunos aprendam a lidar com eles desde cedo.
Saber escrever inclui, também, a capacidade de usar a variedade lingüística adequada ao gênero de texto que se está produzindo, aos objetivos que se quer cumprir com o texto, aos conhecimentos e interesses dos leitores previstos, ao suporte em que o texto vai ser difundido, fazendo escolhas adequadas quanto ao vocabulário e à gramática. Isso envolve dedicar atenção à escolha de palavras e de construções morfossintáticas, com sensibilidade para as condições de escrita e de leitura do texto. É preciso, ainda, saber valer-se de recursos expressivos apropriados ao gênero e aos objetivos do texto (produzir encantamento, comover, fazer rir, ou convencer racionalmente). Essas capacidades de uso da escrita também podem ser ensinadas e aprendidas na escola desde cedo, num trabalho que alie alfabetização e letramento.
Finalmente, é importante adquirir as capacidades de revisar e reelaborar a própria escrita, segundo critérios adequados aos objetivos, ao destinatário e ao contexto de circulação previstos. Tornar-se um usuário da escrita eficiente e independente implica saber planejar, escrever, revisar (reler cuidadosamente), avaliar (julgar se está bom ou não) e reelaborar (alterar, reescrever) os próprios textos. Isso envolve atitude reflexiva e metacognitiva de voltar-se para os próprios conhecimentos e habilidades para avaliá-los e reformulá-los. Por sua importância e necessidade, esta capacidade pode começar a ser desenvolvida na escola desde os primeiros e mais simples textos que as crianças produzem. A escrita do próprio nome num crachá, por exemplo, vai requerer critérios específicos de revisão e reelaboração: o nome está grafado corretamente? com letra legível, de tamanho e cor que facilitam a visualização? está disposto adequadamente no papel?

Palavras finais

Considerando que a possibilidade de integração social, hoje, requer do cidadão muito mais do que o mero conhecimento das “primeiras letras”, procurou-se, neste texto, discutir as noções de alfabetização e letramento e, além disso, demonstrar como é viável contemplar esses dois processos, de maneira articulada, no trabalho pedagógico com as séries iniciais do Ensino Fundamental. Nas breves reflexões e sugestões esboçadas, deve ter ficado claro para os professores que a implementação de propostas como a que aqui se delineou requer, por um lado, a apropriação, pelos docentes, dos conhecimentos teórico-metodológicos envolvidos e, por outro lado, a presença, nas escolas, de material impresso disponível e suficiente para o uso dos alunos. Espero que os argumentos desenvolvidos neste texto se componham com os de outros trabalhos que apontam na mesma direção, de modo a convencer os professores a incluírem em sua pauta de lutas mais esses dois objetos de reivindicação.

Notas:
1 Professora aposentada da Faculdade de Letras da UFMG. Pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale).

SALTO PARA O FUTURO / TV ESCOLA
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segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Prática Pedagógica - Programa I

Alfabetização e letramento: os desafios contemporâneos

Antônio Augusto Gomes Batista1

Neste programa, vamos discutir com os educadores brasileiros os principais desafios da alfabetização e do letramento e as principais perspectivas para fazer com que cada criança tenha assegurado o seu direito a aprender a ler e a escrever e, assim, a participar do mundo da escrita.

Débora

Débora2 tem 12 anos e já repetiu duas vezes de ano. Ela está numa turma equivalente à 4ª série da educação fundamental. Ela lê e escreve com tanta dificuldade que não se considera alfabetizada. Numa entrevista com a supervisora de sua escola, ela disse: “não sei escrever direito; quando faço alguma coisa, faço errado ”. Na mesma entrevista, quando indagada sobre as pessoas que, em sua casa, sabem ler e escrever, ela respondeu que todos sabiam, menos ela e sua irmã. Sua irmã está na terceira série e tem dez anos.
Débora vive na região metropolitana de Belo Horizonte, na periferia de uma das várias cidades que compõem a metrópole. Sua família é pobre e, às vezes, passa por períodos difíceis. Mas seus pais são alfabetizados e, de acordo com ela, sua mãe “anota as coisas para não ficar devendo” e seu pai “costuma escrever as contas”. De outras pessoas que, na vizinhança, usam a escrita, Débora lembra-se de uma vizinha que escreve para saber “o que faz no serviço e as coisas que está precisando em casa”.
Débora já sabe que a escrita representa sons da língua, o que é um passo muito importante em seu processo de alfabetização. Ela escreve e lê corretamente muitas palavras: algumas porque decorou sua forma; outras porque são mais simples. Por exemplo, num ditado, escreveu corretamente “caneta” e “caderno”, dentre outras palavras.
Mas Débora apresenta também erros estranhos de escrita, que não condizem com seus acertos: ela troca sempre, por exemplo, o P pelo T, duas letras muito diferentes graficamente e que representam sons muito diferentes, escrevendo “latis”, em vez de “lápis”; “latiseira”, em vez de “lapiseira”. Débora também escreve de maneira pouco previsível outras palavras: “zir”, em vez de “giz”, “sena”, em vez de “semana”, “trino”, em vez de “tio”.
Na leitura, a lentidão, a hesitação e a necessidade de decompor cada sílaba mostram como, para ela, é difícil decodificar palavras. Tão difícil que, lendo textos, o sentido de palavras e passagens se perde. Débora manifesta várias dificuldades na leitura: não consegue ler globalmente as palavras; sílabas pouco comuns (e, em geral, mais difíceis para um aprendiz) terminam por exigir um grande dispêndio de tempo e de energia, como em “elefante”, “tigre”, “leão” e “coelho”.
Com certeza, Débora já sabe muitas coisas importantes sobre a língua escrita. Mas deveria saber muito mais aos 12 anos, na 4ª série: em razão de suas dificuldades na codificação e na decodificação de palavras, apresenta sérias limitações para escrever e ler textos; apresenta também sérias limitações para usar a escrita na escola, para aprender novos conteúdos e para desenvolver novas habilidades.
De acordo com as informações da supervisora da escola onde Débora estuda, ela é uma menina bem comportada e quieta. Está sempre com o uniforme limpo, o cabelo arrumado em tranças que correm rentes à sua cabeça. No recreio, conversa com os colegas, brinca, corre. Débora é uma menina normal.
A supervisora da escola de Débora estava fazendo uma complementação de seu curso de Pedagogia. E Débora se correspondeu com um dos professores da supervisora. Na primeira carta3, ela escreveu, com a ajuda da supervisora:

oi

brigada tela [pela] carta ce [que] você mondou [mandou] para min [...] você deve ser legau Não pre siza desipre acuta [não precisa de se preocupar]
descute [desculpe] pela
com a letre [letra]

um abraço
Débora

Na mesma turma de Débora, outras crianças apresentam dificuldades parecidas: há o William, há o Jonathan. William lê, mas escreve com muitas dificuldades. Jonathan, como Débora, lê e escreve com dificuldade.
Como eles, mais da metade das crianças de 4ª série manifestam tantas dificuldades que não podem ser consideradas alfabetizadas, ou alfabetizadas funcionalmente4. Descobrimos isso em 2003.

Fracasso da alfabetização

Em 2003, os jornais e as revistas noticiaram o fracasso da escola brasileira em fazer com que seus alunos se alfabetizem, aprendendo a ler e a escrever.
As notícias foram a propósito da divulgação dos resultados de duas avaliações das habilidades de leitura de crianças e jovens brasileiros. A primeira é a do Sistema de Avaliação da Educação Básica, o SAEB, desenvolvida pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). A segunda é a do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), desenvolvida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e envolvendo diferentes países5.
E os resultados não são nada bons. De acordo com os dados do PISA, a proficiência em leitura de estudantes de 15 anos é significativamente inferior à de todos os outros países participantes da avaliação.
De acordo com os dados do SAEB6, na avaliação realizada em 2001 (divulgada em 2003), apenas 4,48% dos alunos de 4ª série possuem um nível de leitura adequado ou superior ao exigido para continuar seus estudos no segundo segmento do Ensino Fundamental.
Uma parte deles apresenta um desempenho situado no nível intermediá­rio: 36,2%, segundo o SAEB, estão “começando a desenvolver as habilidades de leitura, mas ainda aquém do nível exigido para a 4ª série ” (p.8).
A grande maioria se concentra, desse modo, nos estágios mais elementares de desenvolvimento: 59% dos alunos da 4ª série apresentam acentuadas limitações em seu aprendizado da leitura e da escrita. Dito de outra forma: cerca de 37% dos alunos estão no estágio crítico de construção de suas competências de leitura (o que significa que têm dificuldades graves para ler) e 22% estão abaixo desse nível, no estágio muito crítico (o que significa que não sabem ler).
Segundo o SAEB, as crianças no estágio crítico se caracterizam pelo fato de não serem “leitores competentes ”, por lerem “de forma truncada, apenas frases simples ” (p.8). As crianças no estágio muito crítico, por sua vez, são aquelas que “não desenvolveram habilidades de leitura. Não foram alfabetizadas adequadamente. Não conseguem responder aos itens da prova” (p.8).
Uma comparação, feita por pesquisadores7, entre os resultados no SAEB de alunos da 4ª, da 8a e do 3o ano do Ensino Médio, é também desalentadora: o aumento da proficiência em leitura de uma para outra série “é bastante modesto, o que significa uma aquisição ainda muito restrita de novas habilidades e competências em língua portuguesa ao longo da escolaridade básica”.
A conclusão é uma só e assustadora: um número expressivo de estudantes não aprende a ler na escola brasileira; essa escola produz um grande contingente de analfabetos ou de analfabetos funcionais8 – quer dizer, pessoas que, embora dominem as habilidades básicas do ler e do escrever, não são capazes de utilizar a escrita na leitura e na produção de textos na vida cotidiana ou na escola, para satisfazer às exigências do aprendizado.

Alfabetização no Brasil

Diante dos problemas educacionais, todos nós temos a tendência a acreditar que, em nosso tempo ou no tempo de nossos avós, as coisas eram melhores. As escolas alfabetizavam com sucesso, os professores eram mais qualificados, os alunos eram mais dispostos a aprender e mais disciplinados.
Diante dos difíceis momentos do presente, acreditamos que voltar ao passado seria uma boa solução. Mas, no caso da alfabetização, não vale a pena voltar ao passado. Boa parte dos problemas que enfrentamos hoje tem a ver justamente com esse passado.
Assim como Portugal, o Brasil, sua ex-colônia, pôs em prática um modo restrito ou gradual de difusão da alfabetização. Pouco antes da Independência, em 1820, apenas 0,20% da população, estima-se9, é alfabetizada. Assim, o ler e o escrever são privilégio das elites que, após esses primeiros aprendizados, dão continuidade a seus estudos.
Ao longo do século, porém, novas frações da população se alfabetizam, mas muito gradualmente. Em 1872, quando se realiza o primeiro Censo nacio­nal, o índice de alfabetizados é de apenas de 17,7% entre pessoas de cinco anos e mais. A partir do século XX, esse índice vai sempre progredir, embora permaneça, até 1960, inferior ao índice de analfabetos, que constituem 71,2% em 1920, 61,1% em 1940 e 57,1% em 1950. Em 1960, pela primeira vez, conseguimos inverter a proporção: contamos, então, com 46,7% de analfabetos. A partir de então, as taxas caem sucessivamente, de 1970 a 2000, para 38,7%, 31,9%, 24,2% e 16,7%10.
As mesmas desigualdades também se manifestam em matéria de escolarização: só no final da década passada, o País conseguiu universalizar o acesso à escola, embora em muitos estados persistam percentuais expressivos de crianças fora da escola.
Sabemos sobre que parcelas da população incidem o analfabetismo e o fracasso escolar. Sabemos que grupos sociais não têm acesso à escolarização. Os dados do SAEB são exemplares: o fracasso na alfabetização é maior entre as crianças que vivem em regiões que possuem piores indicadores sociais e econômicos; entre as crianças que trabalham, entre as crianças negras. Quer dizer, o problema do analfabetismo, na escola ou fora dela, é parte de um problema maior, de natureza política: o da desigualdade social, o da injustiça social, o da exclusão social.
Assim, as dificuldades que enfrentamos no presente não são, em certa medida, dificuldades novas. Fazem parte de uma dificuldade antiga e persistente em nosso País: a de assegurarmos a todos os brasileiros a igualdade de acesso a bens econômicos e culturais, neles compreendidos a alfabetização e o domínio da língua escrita.
Mas os mesmos dados que mostram a difícil herança que nos foi legada e as dimensões de nosso desafio mostram também que, ainda que muito lentamente, avançamos. Ao longo de todo o século passado, conseguimos incluir novas parcelas da população no mundo da escrita. Éramos cerca de 18% de alfabetizados, quase no final do século XIX; no início do século XXI, somos quase 83%.
Conseguimos, também, na década passada, reduzir os percentuais de analfabetismo entre crianças e jovens em idade escolar: as taxas de analfabetismo nas faixas etárias de 10 a 19 anos – relativas a crianças e jovens que estão ou estiveram na escola – apresentam uma redução expressiva nos últimos anos: entre 1996 e 2001, os percentuais de analfabetos nessa faixa de idade caem pela metade, isto é, de cerca de 14% para cerca de 7%11.
Mais importante, avançamos (mesmo que lentamente), ao mesmo tempo em que aumentamos nossas expectativas em relação à alfabetização, quer dizer, ao mesmo tempo em que progressivamente ampliamos o nosso conceito de alfabetização, em resposta a novos problemas, colocados pelo mundo contemporâneo.
O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa apresenta a definição estrita de alfabetização. Ela é o “ato ou efeito de alfabetizar, de ensinar as primeiras letras ”. Assim, uma pessoa alfabetizada é entendida como aquela que domina as “primeiras letras ”, que domina as habilidades básicas ou iniciais do ler e do escrever.

Um exemplo: você é capaz de ler global e instantaneamente (de uma só vez, sem analisar cada elemento) a primeira palavra ao lado porque é alfabetizado.
------------------------------------› CASA
Outro exemplo: você é capaz de decodificar, analisando seus elementos (letra, sílaba), a segunda palavra ao lado (embora ela não exista), porque você é alfabetizado.
------------------------------------› AVLATLONPLAN

Em síntese: alfabetização, em seu sentido estrito, designa, na leitura, a capacidade de decodificar os sinais gráficos, transformando-os em sons, e, na escrita, a capacidade de codificar os sons da língua, transformando-os em sinais gráficos.
Ao longo do século passado, porém, esse conceito de alfabetização foi sendo progressivamente ampliado, em razão de necessidades sociais e políticas, a ponto de já não se considerar alfabetizado aquele que apenas domina as habilidades de codificação e de decodificação, “mas aquele que sabe usar a leitura e a escrita para exercer uma prática social em que a escrita é necessária ”12.
Essa ampliação se manifesta, por exemplo, nos Censos (cujos dados utilizamos acima). Leia o texto abaixo, de Magda Soares, sobre como os Censos foram progressivamente ampliando seu conceito de alfabetização13:

A ressignificação do conceito de alfabetização nos Censos

(...) até os anos 40 do século passado, os questionários do Censo indagavam, simplesmente, se a pessoa sabia ler e escrever, servindo, como comprovação da resposta afirmativa ou negativa, a capacidade de assinatura do próprio nome. A partir dos anos 50 e até o último Censo (2000), os questionários passaram a indagar se a pessoa era capaz de “ler e escrever um bilhete simples ”, o que já evidencia uma ampliação do conceito de alfabetização: já não se considera alfabetizado aquele que apenas declara saber ler e escrever, genericamente, mas aquele que sabe usar a leitura e a escrita para exercer uma prática social em que a escrita é necessária.
Essa ampliação do conceito revela-se mais claramente em estudos censitários desenvolvidos a partir da última década, em que são definidos índices de alfabetizados funcionais (e a adoção dessa terminologia já indica um novo conceito que se acrescenta ao de alfabetizado, simplesmente), tomando como critério o nível de escolaridade atingido ou a conclusão de um determinado número de anos de estudo ou de uma determinada série (em geral, a 4ª série do Ensino Fundamental), o que traz, implícita, a idéia de que o acesso ao mundo da escrita exige habilidades para além do apenas aprender a ler e a escrever. Ou seja: a definição de índices de alfabetismo funcional utilizando-se, como critério, anos de escolaridade, evidencia o reconhecimento dos limites de uma avaliação censitária baseada apenas no conceito de alfabetização como “saber ler e escrever ” ou “saber ler um bilhete simples ”, e a emergência de um novo conceito, que incorpora habilidades de uso da leitura e da escrita desenvolvidas durante alguns anos de escolarização.
A ampliação do conceito de alfabetização se manifesta também na escola. Até muito recentemente, considerava-se que a entrada da criança no mundo da escrita se fazia apenas pela alfabetização, pelo aprendizado das “primeiras letras ”, pelo desenvolvimento das habilidades de codificação e de decodificação. O uso da língua escrita, em práticas sociais de leitura e produção de textos, seria uma etapa posterior à alfabetização, devendo ser desenvolvido nas séries seguintes.
Desde meados dos anos 80, porém, concepções psicológicas, lingüísticas e psicolingüísticas de leitura e escrita vêm mostrando que, se o aprendizado das relações entre as “letras ” e os sons da língua é uma condição do uso da língua escrita, esse uso também é uma condição da alfabetização ou do aprendizado das relações entre as “letras ”e os sons da língua.
Talvez essa idéia14 tenha-se manifestado, primeiramente, na defesa da criação, em sala de aula, de um ambiente alfabetizador.
Metodologicamente, a criação desse ambiente se concretizaria na busca de levar as crianças em fase de alfabetização a usar a língua escrita, mesmo antes de dominar as “primeiras letras ”, organizando a sala de aula com base na escrita (registro de rotinas, uso de etiquetas para organização do material, emprego de quadros para controlar a freqüência, por exemplo). Conceitualmente, a defesa da criação de um ambiente alfabetizador estaria baseada na constatação de que saber para que a escrita serve (suas funções de registro, de comunicação a distância, por exemplo) e saber como é usada em práticas sociais (organizar a sala de aula, fixar regras de comportamento na escola, por exemplo) auxiliariam a criança em sua alfabetização. Auxiliariam por dar significado e função à alfabetização; auxiliariam por criar a necessidade da alfabetização; auxiliariam, enfim, por favorecer a exploração, pela criança, do funcionamento da língua escrita.
A necessidade desse conhecimento sobre os usos e as funções da língua escrita seria particularmente relevante para crianças de famílias muito afastadas do mundo da escrita, que não teriam muitas oportunidades de manusear textos, de participar de situações de leitura e produção de textos, de, antes da escola, imergir na cultura escrita.
Assim, alfabetizar não se reduziria ao domínio das “primeiras letras ”. Envolveria também saber utilizar a língua escrita nas situações em que esta é necessária, lendo e produzindo textos. É para essa nova dimensão da entrada no mundo da escrita que se cunhou uma nova palavra: letramento15. Ela serve para designar o conjunto de conhecimentos, de atitudes e de capacidades necessários para usar a língua em práticas sociais.
Por meio desse conceito, a escola ampliou, assim, o seu conceito de alfabetização. O que boa parte dos dados do SAEB mostra é que muitas crianças, embora alfabetizadas, não são letradas (ou manifestam diferentes graus de analfabetismo funcional, já que os dois conceitos tendem a se sobrepor). Em outras palavras, não são capazes de utilizar a língua escrita em práticas sociais, particularmente naquelas que se dão na própria escola, no ensino e no aprendizado de diferentes conteúdos e habilidades.
Assim: as dificuldades que enfrentamos, hoje, na alfabetização, são agravadas tanto pelo passado (a herança do analfabetismo e das desigualdades sociais), quanto pelo presente (a ampliação do conceito de alfabetização e das expectativas da sociedade em relação a seus resultados).
O que fazer em resposta a essas dificuldades? A série Alfabetização, leitura e escrita, em seus diferentes programas, procura caracterizar os desafios da alfabetização e do letramento no país e, ainda, auxiliar os educadores na busca de respostas para esses desafios.

Notas:

1 Professor da Faculdade de Educação da UFMG. Diretor do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale). Consultor dessa série.
2 O caso de Débora baseia-se em diferentes casos reais de crianças com dificuldades no aprendizado da leitura e da escrita. Mas a maior parte das informações foi extraída de casos relatados e analisados pela professora Ana Maria Prado Barbosa. Ela atua como docente e como supervisora na rede de ensino do Estado.
3 Na primeira carta, o professor disse a Débora para desculpá-lo pela letra ruim. Foi por isso que ela respondeu que não era para se preocupar com a sua letra.
4 O conceito de alfabetizado funcionalmente é discutido mais à frente.
5 32 países participaram do PISA, dentre eles Coréia do Sul, Espanha, EUA, Federação Russa, França, México, Portugal e Brasil.
6 Qualidade da Educação: uma nova leitura do desempenho dos estudantes da 4a série do Ensino Fundamental. Brasília: MEC/INEP, abril 2003.
7 Trata-se do trabalho realizado por Alicia Bonamino, Carla Coscarelli e Creso Franco ("Avaliação e letramento: concepções de aluno letrado subjacentes ao SAEB e ao PISA". Educação e Sociedade, Campinas, vol. 23, n.81, p.91-113, dez. 2002). A comparação foi feita com os dados do SAEB 1999. As citações foram extraídas da página 103.
8 Aqui você encontra uma definição de analfabeto funcional. Essa definição é retomada mais à frente.
9 A estimativa é feita por Lawrence Hallewell (O livro no Brasil: sua história. São Paulo: Edusp, 1985, p.176).
10 Os dados ao lado são encontrados no artigo de Alceu Ravanello Ferraro ("Analfabetismo e níveis de letramento no Brasil: o que dizem os censos?". Educação e Sociedade, Campinas, vol.23, n.81, p.21-47, dez.2002).
11 Ver, a respeito, o Mapa do analfabetismo no Brasil. Brasília: INEP, 2003.
12 A definição entre aspas é de Magda Soares ("Alfabetização: a ressignificação do conceito". "Alfabetização e Cidadania". Revista de Educação de Jovens e Adultos. RaaB, n. 16, julho 2003, p.10-11).
13 O trecho foi extraído do mesmo artigo da educadora, citado acima. "Alfabetização: a ressignificação do conceito". Alfabetização e Cidadania. Revista de Educação de Jovens e Adultos. RaaB, n. 16, julho 2003, p.10-11.
14 Essa idéia se manifesta também em muitas outras práticas pedagógicas realizadas antes, durante e depois da alfabetização, como, por exemplo, a leitura em voz alta pelo professor, a redação de textos coletivos em que o docente serve de secretário ou escriba, o contato com textos que circulam na sociedade e não apenas com textos produzidos para a exploração das relações entre "letras" e "sons".
15 Aqui se aborda o conceito de letramento

SALTO PARA O FUTURO / TV ESCOLA
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Prática Pedagógica - Programa 2

Programas da TV Cultura Brasil


Oralidade e escrita: dificuldades de ensino-aprendizagem na alfabetização

MARIA LUCIA CASTANHEIRA1
ANA LYDIA SANTIAGO2


Fracasso escolar: buscando explicações para as dificuldades de ensino-aprendizagem na alfabetização


Uma das explicações dadas para o fracasso da alfabetização no Brasil é a de que a democratização do acesso à escola, ocorrida a partir dos anos 70, levou a escola a lidar com crianças que teriam, em razão de suas condições de vida, sérias deficiências culturais e lingüísticas, que acarretariam dificuldades de aprendizagem. Considerava-se que essas crianças, de um modo geral, apresentavam problemas de indisciplina e não valorizavam a escola. Além disso, sua linguagem oral seria muito distante da língua escrita e, em seu ambiente familiar, elas não tinham oportunidade de vivenciar os usos da escrita nem de conviver com pessoas que valorizassem o aprendizado da escrita.
De fato, os dados estatísticos (os do SAEB dentre eles) mostram que o chamado fracasso escolar tende a se concentrar nas crianças oriundas de meios menos favorecidos economicamente. No entanto, diferentes estudos mostram também que, ao contrário do que em geral se afirma, essas crianças possuem um adequado desenvolvimento cultural e lingüístico e que é a escola que apresenta sérias dificuldades para lidar com a diversidade cultural, lingüística e mesmo étnica da população brasileira.
Este programa tematiza justamente o fracasso da alfabetização de crianças de meios menos favorecidos economicamente. Seus principais objetivos são:
* discutir as diferentes explicações para esse fracasso;
* mostrar que, mesmo experimentando difíceis condições de existência, essas crianças apresentam um adequado desenvolvimento cultural e lingüístico.


Uma reflexão sobre diferentes explicações para o fracasso escolar

Possivelmente, você já se deparou em sua escola, em sua sala de aula, com crianças que apresentam os chamados "problemas de aprendizagem", particularmente, na aquisição da leitura e da escrita. Com certeza, essas crianças não são os únicos casos de "crianças problemas3" existentes por aí: as crianças que estão diante de nós não estão sozinhas – na minha escola, na sua escola, na escola vizinha, naquela escola lá do outro lado da cidade e ainda na escola vizinha dessa escola – encontramos inúmeras crianças que não estão tendo sucesso, que fracassam em seu aprendizado. Por vezes, essas crianças passam anos freqüentando a escola, até que um dia desistem, "entendem" que não têm "cabeça para o estudo" ou simplesmente vão "cuidar da vida e trabalhar", "fazer um bico e arranjar uns trocados para ajudar em casa".
Assim como o problema de crianças que fracassam na escola não acontece apenas em sua escola, professor, ele também não é um problema que surgiu somente agora, nos dias atuais. Pelo contrário, esse é um problema cuja história se inicia com a própria história da escolarização pública. Com a institucionalização do ensino obrigatório, surgem tanto histórias de sucesso de alguns, como histórias de fracasso de muitos outros. Observe, por exemplo, as expressões que, ao longo dos anos, foram sendo atribuídas aos alunos que, por diferentes motivos, não obtêm sucesso nos seus primeiros anos de escolarização: "débil, deficiente mental educável, anti-intelectual, criança com desvio de conduta, criança lenta, criança com repertório comportamental limitado, criança com distúrbios de desenvolvimento, criança com distúrbios de aprendizagem, carente lingüístico, carente cultural, criança com pobreza vocabular, com atraso de maturação, com distúrbio psicomotor, com problemas de socialização, hiperativa, disléxica, portadora de necessidades espe­ciais" (Griffo, 1996).
É evidente que tais nomeações não surgem ao acaso. Elas expressam diferentes perspectivas de entendimento das causas do fracasso escolar ao longo da história.
Nas últimas décadas do século passado, várias hipóteses causais foram apresentadas como explicação para o fracasso escolar, dando origem à consolidação de quatro diferentes abordagens para interpretação desse fenômeno: Organicista, Instrumental Cognitivista, Questionamento da Escola, Handicap Sociocultural. Essas abordagens organizam-se em torno de questões, hipóteses explicativas e metodologias de pesquisa que orientam os profissionais de diversas áreas – médicos, professores, supervisores, psicólogos, etc. – em seu processo de estudo e intervenção junto a crianças com problemas de aprendizagem. Apresentamos, a seguir, uma breve caracterização de cada uma dessas abordagens.
A primeira teorização sobre as dificuldades de aprendizagem surgiu na França, no final do século XIX, e ficou conhecida como Abordagem Organicista (Fijalkow, 1989), por investigar as causas do fracasso escolar levantando hipóteses sobre os possíveis distúrbios e doenças neurológicas do aluno. As pesquisas realizadas nessa linha de investigação promoveram uma verdadeira classificação médica dos problemas de aprendizagem. Nos dias de hoje, quando se encaminha um aluno para uma avaliação neurológica, buscando apoio na contribuição da medicina para a compreensão das dificuldades de aprendizagem, o resultado do diagnóstico aponta, geralmente, como causa do problema do escolar um quadro de dislexia, disfunção cerebral mínima (DCM) ou hiperatividade.
Moysés e Collares chamam nossa atenção para a necessidade de se fazer distinção entre a dislexia – quadro conhecido em neurologia, em que a perda do domínio da linguagem escrita pode ocorrer em conseqüência de seqüela (temporária ou definitiva) de uma patologia do sistema nervoso central – e a dislexia específica de evolução – nome da entidade patológica que foi empregada no campo de estudos dos problemas de aprendizagem da leitura e da escrita. Segundo essas autoras, a dislexia específica de evolução foi "inventada" a partir da suposição de que, se alguém que já sabe ler e escrever perde a capacidade de fazê-lo em função de uma patologia do sistema nervoso central, então, crianças que têm dificuldade em aprender ou não aprendem a ler e a escrever, possivelmente, deverão ter alguma patologia dessa ordem. Assim, a partir dessa idéia, uma das perguntas que orientou as pesquisas nessa área passou a ser: "se uma doença neurológica pode comprometer o domínio da linguagem escrita, será que a criança que não aprende a ler e escrever teria uma 'doença neurológica'?" Como você pode perceber, o conceito de "Dislexia Específica de Evolução" é proposto com base na transposição de um tipo de raciocínio, perfeitamente aplicável na área médica, para a área educacional. Porém, a pertinência dessa transposição precisa ser examinada com cuidado.
Valendo-se desse mesmo tipo de raciocínio, Strauss, um neurologista americano, lançou, em 1918, a hipótese segundo a qual os distúrbios de comportamento dos escolares e também alguns dos distúrbios de aprendizagem poderiam ser conseqüência de uma lesão cerebral mínima. Ou seja, tais distúrbios seriam em decorrência de uma lesão, suficiente para alterar o comportamento e/ou alguma função intelectual, mas mínima o bastante a ponto de não ocasionar outras manifestações neurológicas. Essa hipótese de Strauss não foi acolhida no meio científico nem divulgada, naquela época, para a sociedade. Contudo, alguns anos mais tarde, em 1957, a lesão cerebral mínima ressurge na medicina, como equivalente à síndrome hipercinética ou hiperatividade. Em 1962, durante um simpósio internacional, realizado em Oxford, com a participação de grupos de pesquisa dedicados ao estudo da lesão cerebral mínima, chegou-se à conclusão de que não havia nenhuma lesão. Vários métodos de investigação foram utilizados e não se conseguiu detectar nenhuma lesão. Os pesquisadores admitiram o erro e, para corrigi-lo, renomearam o quadro, passando a chamá-lo de disfunção cerebral mínima (DCM). A descrição das manifestações clínicas dessa nova entidade foi ampliada: hiperatividade, agressividade, distúrbio de aprendizagem, déficit de concentração, instabilidade de humor, baixa tolerância a frustrações, para citar apenas as mais divulgadas.
Várias críticas são apresentadas, atualmente, a essa abordagem do fracasso escolar e das dificuldades de aprendizagem. A abordagem Organicista é sempre citada como a grande responsável pela medicalização generalizada do fracasso escolar, pois o tratamento proposto para sanar as dificuldades de aprendizagem da criança é o uso de remédios psiquiátricos. Uma das conseqüências mais indesejada da utilização dessa abordagem é a identificação do aluno como alguém que possui uma falha orgânica, ou seja, um déficit neurológico. Ao se empregar termos como "Dislexia", "Hiperatividade" e "Disfunção Cerebral Mínima", tende-se a ver o(a) aluno(a) como o(a) "único(a) responsável" pelo seu próprio fracasso. Como conse­qüência, limita-se, assim, o campo de investigação do fracasso escolar, uma vez que outros fatores intervenientes na produção desse fenômeno são desconsiderados. A "facilidade" com que esse diagnóstico é utilizado nas escolas cria um quadro de encaminhamento para atendimento médico e prescrição medicamentosa, levando à biologização de um fenômeno da esfera escolar, produzindo gerações que acabam por se tornar conhecidas como "geração comital ou gardenal" (Vidal, 1990; Cypel, 1993).
A segunda abordagem do fenômeno do fracasso escolar surgiu a partir do desenvolvimento de pesquisas no campo da psicologia cognitiva. Trata-se da Abordagem Instrumental Cognitivista, assim designada por buscar as causas das dificuldades de aprendizagem em possíveis disfunções relativas a um dos quatro processos psicológicos fundamentais: a percepção, a memória, a linguagem e o pensamento. Segundo Sena (1999), o diagnóstico realizado utiliza-se basicamente do processo de investigação diferencial (comparando um grupo considerado normal a outro considerado atrasado) e busca identificar os seguintes sintomas: a desorganização espaço-temporal, os transtornos de lateralização, o desenvolvimento inadequado da linguagem, os transtornos perceptivos visuais e auditivos, os déficits de atenção seletiva, os problemas de memória. Fijalkow (1989), Nunes, Buarque e Bryant (1992) analisam um grande conjunto de pesquisas desenvolvidas a partir dessa perspectiva e apontam alguns problemas que precisam ser considerados ao interpretar os resultados das mesmas. Um desses problemas diz respeito, por exemplo, à não-neutralidade e à não-objetividade das situações de teste a que as crianças são submetidas, em decorrência da dificuldade de se isolar variáveis para que essas possam ser testadas independentemente uma das outras. Além disso, deve-se considerar que a abordagem cognitivista, como a abordagem organicista, procura as causas do fracasso das crianças apenas nas características individuais, desconsiderando possibilidades explicativas em outras esferas.
A Abordagem Afetiva caracteriza-se por privilegiar como explicação causal do fracasso escolar os transtornos afetivos da personalidade. Partidários dessa abordagem defendem a idéia de que as causas das dificuldades de aprendizagem devem ser buscadas em perturbações no estado socioafetivo da criança e não em supostos problemas neurológicos ou cognitivos. Nessa perspectiva, o atraso do aluno é uma manifestação de suas dificuldades originadas de algum conflito emocional (consciente ou inconsciente), cuja origem encontra-se na dinâmica familiar. Por meio da utilização do método clínico, propõe-se, primeiro, investigar se a dificuldade é de fato um problema de ordem pedagógica ou psicológica, para, posteriormente, buscar compreender porque uma determinada criança elege um determinado sintoma e não outro como expressão de suas dificuldades emocionais. Uma das críticas feitas a essa abordagem decorre do fato de que essa acaba por dar subsídios para que se responsabilize a criança e sua família por dificuldades que surgem na esfera escolar, transferindo para fora da escola – para as famílias, para as clínicas – a busca de soluções para os problemas da criança.
A abordagem denominada Questionamento da Escola reúne estudos que investigam diferentes fatores escolares como intervenientes na produção do fracasso dos alunos; dentre esses se destacam, por exemplo: a inadequação dos métodos pedagógicos, as dificuldades na relação professor-aluno, a precária formação do professor, a falta de infra-estrutura das escolas da rede pública de ensino. Segundo Sena (1999), "deslocando a questão do aluno que não aprende para a escola que não ensina" seguidores dessa abordagem propõem modificações na estrutura e organização da escola, a fim de que essa instituição cumpra seu papel social.
A abordagem do Handicap Sociocultural identifica no meio sociofamiliar a origem do fracasso das crianças na escola. Adeptos dessa abordagem consideram a bagagem sociocultural dos alunos e de seus familiares um fator decisivo, tendo em vista que a maioria dos alunos que fracassam na escola é oriunda das camadas populares. Um argumento central na articulação dessa abordagem é que essas crianças apresentam uma linguagem deficitária o que, em conseqüência, implicaria déficit cognitivo. Segundo Soares (1987), teorias do déficit cultural, lingüístico e cognitivo ocultam a verdadeira causa da discriminação das crianças das camadas populares na escola – a desigual distribuição de riqueza numa sociedade capitalista – e terminam por responsabilizar as crianças e suas famílias por suas dificuldades e isentar de responsabilidade a escola e a sociedade. De acordo com Sena (1999), "apesar do número significativo de pesquisas comprovando o caráter ideológico do discurso que fundamenta essa abordagem, ainda hoje podemos constatar como seus pressupostos estão presentes e influenciam fortemente a opinião dos profissionais da educação" sobre possíveis causas do fracasso escolar.

Elementos para o questionamento de teorias do déficit

A breve caracterização das diferentes abordagens do fracasso escolar, apresentada acima, permite constatar que os considerados fracassados são situados em uma mera posição de objeto do conhecimento, marcados por um processo diagnóstico que, embora oscile entre oferecer como explicação causal do fracasso escolar ora uma disfunção neurológica ou cognitiva, ora um transtorno afetivo, ora problemas lingüísticos, não vacila em apontar esses sujeitos como deficitários (Santiago, 2000).
Um mito se faz especialmente presente na escola em relação às crianças das camadas populares: o mito da existência de um déficit lingüístico e cultural por parte dessas crianças e de seus familiares. Soares (1987) explica que o mito da deficiência lingüística e cultural baseia-se na suposição de que:
"(...) as crianças das camadas populares chegam à escola com uma linguagem deficiente, que as impede de obter sucesso nas atividades e aprendizagem: sua linguagem é pobre - não sabem o nome de objetos comuns; usam frases incompletas, curtas, monossilábicas; sua sintaxe é confusa e inadequada à expressão do pensamento lógico; cometem 'erros' de concordância, de regência, de pronúncia; comunicam-se muito mais através de recursos não verbais do que de recursos verbais. Em síntese são crianças deficitárias lingüisticamente"(Soares, 1987, p. 20).
Essa suposta deficiência lingüística seria atribuída à "pobreza" do contexto lingüístico familiar em que vive a criança. Adeptos dessa abordagem associam a essa visão de um contexto familiar deficiente lingüística e culturalmente a idéia de que os familiares dessas crianças (seus pais ou responsáveis) não demonstrariam interesse por seu desenvolvimento escolar e não se empenhariam em dar suporte para que essas crianças tenham condições de aprender na escola.
Diversas pesquisas, desenvolvidas a partir dos anos 70, fornecem elementos para se refutar a hipótese do déficit como causa do fracasso escolar. O trabalho de Labov (Soares, 1987), por exemplo, forneceu elementos para o questionamento das situações de teste a que crianças negras, moradoras de guetos em grandes cidades americanas, eram submetidas. Segundo ele, a artificialidade, bem como a diferença de classes do entrevistador e dos entrevistados, comprometeriam o desempenho dessas crianças, levando-as a se mostrarem desarticuladas e monossilábicas nas situações de entrevista. A análise da produção lingüística dessas crianças em interação com seus pares ou em entrevistas feitas por pessoas do seu próprio grupo social revelou que elas possuíam uma gramática sistemática, coerente e lógica. Segundo Soares, Labov adotaria uma posição contrária à dos partidários da teoria do déficit lingüístico. Para ele, crianças das camadas populares "narram, raciocinam e discutem com muito mais eficiência que os falantes pertencentes às classes mais favorecidas, que contemporizam, qualificam, perdem-se num excesso de detalhes irrelevantes" (Soares, 1987, p.47).
Segundo estudos sobre a relação entre linguagem, cultura e escolarização (Cook-Gumperz e Gumperz, 1992; Oliveira e Nascimento, 1990) que levam em conta a existência de diferenças lingüísticas e culturais entre crianças das camadas populares, minorias étnicas e crianças das camadas economicamente favorecidas da população, o fato de a escola não estar preparada para lidar com essas diferenças seria um dos principais fatores que contribuíram para a produção do fracasso escolar. Outros estudos (Fijalkow, 1989) apresentam evidências contrárias à idéia de que existe desinteresse por parte dos familiares das crianças das camadas populares em relação à sua carreira escolar, pois para essas famílias o sucesso na escola representaria a possibilidade de um futuro melhor para seus filhos. Estudos desenvolvidos por Griffo (1996) e Costa (1993) demonstraram o empenho dos familiares em contribuir para a reversão da situação de fracasso em que seus filhos se encontravam. Castanheira (1991) apresenta análise de como crianças das camadas populares, moradoras de um bairro da periferia de Belo Horizonte, eram preparadas para o ingresso na 1ª série por seus pais ou por seus irmãos mais velhos. As interações dessas crianças com a escrita criavam oportunidades de um contato cotidiano com esse objeto do conhecimento, fosse em brincadeiras de ruas, de aulinhas com amigos ou atividades orientadas por seus pais ou irmãos mais velhos. Essas experiências com a escrita preparavam essas crianças para o seu ingresso na escola em melhores condições para aquisição da leitura e da escrita. Em muitos casos, ao preparo e envolvimento da criança com a escrita antes de seu ingresso na escola de 1º grau não se seguiria uma continuidade do ensino de forma adequada dentro dessa instituição.
Estudos desenvolvidos por Bernard Lahire sobre sucesso escolar nos meios populares, na França, acrescentam diversos elementos a essa discussão, ao apresentar detalhes das diversas formas utilizadas por essas famílias como suporte para que seus filhos pudessem ser bem-sucedidos na escola. Essas formas de suporte variam de família para família e incluem desde a preocupação em garantir que as crianças tenham livros de referência para consulta na hora dos estudos em casa, como atitudes persuasivas como conversas ou mesmo castigos. Os dados analisados por Lahire (1997) levam também à conclusão de que não existe uma relação causal direta entre o sucesso escolar e empenho das famílias em acompanhar os filhos em suas atividades escolares. Observou-se que, em alguns casos, a intervenção familiar, embora positiva, tem efeito limitado sobre a aprendizagem do aluno, como, por exemplo, quando se garante a posse de livros de referência, mas esses não são efetivamente utilizados pelos adultos da família. Além disso, demonstrou-se que as diferentes atitudes tomadas pelas famílias não são valorizadas da mesma forma nas diversas escolas onde esses alunos são atendidos.

À guisa de conclusão

Como podemos ver a partir do que foi exposto acima, temos disponíveis diversas possibilidades explicativas para o fracasso escolar e as dificuldades que surgem no processo de ensino-aprendizagem. Resta-nos, então, o desafio de buscar mais elementos para que possamos nos posicionar diante dos casos presentes em nossas salas de aula, em nossas escolas. Estudos como os mencionados acima indicam a necessidade de que busquemos conhecer e respeitar as diferenças culturais e lingüísticas apresentadas por nossos alunos e exercitar a nossa compreensão sobre as implicações dessas diferenças nas produções orais e escritas das crianças e jovens dentro da escola. A existência dessas diversas possibilidades explicativas para o fracasso escolar indica a necessidade de sermos cautelosos ao "diagnosticar" as "dificuldades" e os "problemas" apresentados pelos alunos – não existe uma explicação única para todos os casos, cada caso tem sua história e é necessário intervir examinando que conse­qüências essa intervenção trará para a vida dos nossos alunos.


Referências Bibliográficas

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COOK-GUMPERZ e GUMPERZ. Cook-Gumperz and Gumperz, 1992: Changing views of language in Education: the implications for literacy research. In: Beach R. et al.(eds.). Multidisciplinary Perspectives on Literacy Research. Urbana, Illinois: NCRE/ NCTE, 1992.
COLLARES, C. A., MOYSÉS, M. A. A história não contada dos distúrbios de aprendizagem. Cadernos Cedes, 28. São Paulo: Papirus. P. 31-48.
COSTA, Dóris Anita Freire. Fracasso Escolar: diferença ou deficiência. Porto Alegre: ed. Quarup, 1993.
CYPEL, Saul. O aprendizado escolar: reflexões sobre alguns aspectos neurológicos. Revista FDE, 19. São Paulo, 1993.
FIJALKOW, J. Malos Lectores: por qué? Madri: Piramide, 1989.
GRIFO, Clenice. Dificuldades de aprendizagem na alfabetização: perspectivas do aprendiz. Centro de Referência do Professor: Séries Cadernos do Professor e Programa da Pós-Graduação da FAE/UFMG, 1996.
LAHIRE, B. Sucesso escolar nos meios populares - as razões do improvável. São Paulo: Ática. 1997.
NUNES, T, BUARQUE, L. e BRYANT, P. Dificuldades na aprendizagem da leitura. São Paulo: Cortez Editora/Autores Associados, 1992. P. 13-31.
OLIVEIRA, Marco Antônio e NASCIMENTO, Milton do. Da análise de "erros" aos mecanismos envolvidos na aprendizagem da escrita. Educação em Revista : 12 (33-43), Belo Horizonte, 1990.
SANTIAGO, Ana Lydia B. A inibição intelectual na Psicanálise. Tese de Doutorado. São Paulo, Instituto de Psicologia Clínica da USP, 2000.
SENA, Maria das Graças de Castro. Dispositivo , 1. Belo Horizonte: Clínica d'Iss, 1999. P. 73-78.
SOARES, Magda B. Linguagem e Escola- uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1987.
VIDAL, G. Falso mal: Médico denuncia a farsa da disritimia. Isto é / Senhor , n. 1.070, 21 de março, 1990.
Notas:

1. Professora da Faculdade de Educação da UFMG. Pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) e do CNPq.
2. Psicanalista, professora da Faculdade de Educação da UFMG. Pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale).
3. Expressão típica dos anos 30, presente nas publicações que localizam as causas das dificuldades nos instrumentos da psicologia clínica e que buscam no ambiente sociofamiliar as causas dos desajustes e problemas vivenciados pelo aprendiz.

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