segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Prática Pedagógica - Programa I

Alfabetização e letramento: os desafios contemporâneos

Antônio Augusto Gomes Batista1

Neste programa, vamos discutir com os educadores brasileiros os principais desafios da alfabetização e do letramento e as principais perspectivas para fazer com que cada criança tenha assegurado o seu direito a aprender a ler e a escrever e, assim, a participar do mundo da escrita.

Débora

Débora2 tem 12 anos e já repetiu duas vezes de ano. Ela está numa turma equivalente à 4ª série da educação fundamental. Ela lê e escreve com tanta dificuldade que não se considera alfabetizada. Numa entrevista com a supervisora de sua escola, ela disse: “não sei escrever direito; quando faço alguma coisa, faço errado ”. Na mesma entrevista, quando indagada sobre as pessoas que, em sua casa, sabem ler e escrever, ela respondeu que todos sabiam, menos ela e sua irmã. Sua irmã está na terceira série e tem dez anos.
Débora vive na região metropolitana de Belo Horizonte, na periferia de uma das várias cidades que compõem a metrópole. Sua família é pobre e, às vezes, passa por períodos difíceis. Mas seus pais são alfabetizados e, de acordo com ela, sua mãe “anota as coisas para não ficar devendo” e seu pai “costuma escrever as contas”. De outras pessoas que, na vizinhança, usam a escrita, Débora lembra-se de uma vizinha que escreve para saber “o que faz no serviço e as coisas que está precisando em casa”.
Débora já sabe que a escrita representa sons da língua, o que é um passo muito importante em seu processo de alfabetização. Ela escreve e lê corretamente muitas palavras: algumas porque decorou sua forma; outras porque são mais simples. Por exemplo, num ditado, escreveu corretamente “caneta” e “caderno”, dentre outras palavras.
Mas Débora apresenta também erros estranhos de escrita, que não condizem com seus acertos: ela troca sempre, por exemplo, o P pelo T, duas letras muito diferentes graficamente e que representam sons muito diferentes, escrevendo “latis”, em vez de “lápis”; “latiseira”, em vez de “lapiseira”. Débora também escreve de maneira pouco previsível outras palavras: “zir”, em vez de “giz”, “sena”, em vez de “semana”, “trino”, em vez de “tio”.
Na leitura, a lentidão, a hesitação e a necessidade de decompor cada sílaba mostram como, para ela, é difícil decodificar palavras. Tão difícil que, lendo textos, o sentido de palavras e passagens se perde. Débora manifesta várias dificuldades na leitura: não consegue ler globalmente as palavras; sílabas pouco comuns (e, em geral, mais difíceis para um aprendiz) terminam por exigir um grande dispêndio de tempo e de energia, como em “elefante”, “tigre”, “leão” e “coelho”.
Com certeza, Débora já sabe muitas coisas importantes sobre a língua escrita. Mas deveria saber muito mais aos 12 anos, na 4ª série: em razão de suas dificuldades na codificação e na decodificação de palavras, apresenta sérias limitações para escrever e ler textos; apresenta também sérias limitações para usar a escrita na escola, para aprender novos conteúdos e para desenvolver novas habilidades.
De acordo com as informações da supervisora da escola onde Débora estuda, ela é uma menina bem comportada e quieta. Está sempre com o uniforme limpo, o cabelo arrumado em tranças que correm rentes à sua cabeça. No recreio, conversa com os colegas, brinca, corre. Débora é uma menina normal.
A supervisora da escola de Débora estava fazendo uma complementação de seu curso de Pedagogia. E Débora se correspondeu com um dos professores da supervisora. Na primeira carta3, ela escreveu, com a ajuda da supervisora:

oi

brigada tela [pela] carta ce [que] você mondou [mandou] para min [...] você deve ser legau Não pre siza desipre acuta [não precisa de se preocupar]
descute [desculpe] pela
com a letre [letra]

um abraço
Débora

Na mesma turma de Débora, outras crianças apresentam dificuldades parecidas: há o William, há o Jonathan. William lê, mas escreve com muitas dificuldades. Jonathan, como Débora, lê e escreve com dificuldade.
Como eles, mais da metade das crianças de 4ª série manifestam tantas dificuldades que não podem ser consideradas alfabetizadas, ou alfabetizadas funcionalmente4. Descobrimos isso em 2003.

Fracasso da alfabetização

Em 2003, os jornais e as revistas noticiaram o fracasso da escola brasileira em fazer com que seus alunos se alfabetizem, aprendendo a ler e a escrever.
As notícias foram a propósito da divulgação dos resultados de duas avaliações das habilidades de leitura de crianças e jovens brasileiros. A primeira é a do Sistema de Avaliação da Educação Básica, o SAEB, desenvolvida pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). A segunda é a do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), desenvolvida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e envolvendo diferentes países5.
E os resultados não são nada bons. De acordo com os dados do PISA, a proficiência em leitura de estudantes de 15 anos é significativamente inferior à de todos os outros países participantes da avaliação.
De acordo com os dados do SAEB6, na avaliação realizada em 2001 (divulgada em 2003), apenas 4,48% dos alunos de 4ª série possuem um nível de leitura adequado ou superior ao exigido para continuar seus estudos no segundo segmento do Ensino Fundamental.
Uma parte deles apresenta um desempenho situado no nível intermediá­rio: 36,2%, segundo o SAEB, estão “começando a desenvolver as habilidades de leitura, mas ainda aquém do nível exigido para a 4ª série ” (p.8).
A grande maioria se concentra, desse modo, nos estágios mais elementares de desenvolvimento: 59% dos alunos da 4ª série apresentam acentuadas limitações em seu aprendizado da leitura e da escrita. Dito de outra forma: cerca de 37% dos alunos estão no estágio crítico de construção de suas competências de leitura (o que significa que têm dificuldades graves para ler) e 22% estão abaixo desse nível, no estágio muito crítico (o que significa que não sabem ler).
Segundo o SAEB, as crianças no estágio crítico se caracterizam pelo fato de não serem “leitores competentes ”, por lerem “de forma truncada, apenas frases simples ” (p.8). As crianças no estágio muito crítico, por sua vez, são aquelas que “não desenvolveram habilidades de leitura. Não foram alfabetizadas adequadamente. Não conseguem responder aos itens da prova” (p.8).
Uma comparação, feita por pesquisadores7, entre os resultados no SAEB de alunos da 4ª, da 8a e do 3o ano do Ensino Médio, é também desalentadora: o aumento da proficiência em leitura de uma para outra série “é bastante modesto, o que significa uma aquisição ainda muito restrita de novas habilidades e competências em língua portuguesa ao longo da escolaridade básica”.
A conclusão é uma só e assustadora: um número expressivo de estudantes não aprende a ler na escola brasileira; essa escola produz um grande contingente de analfabetos ou de analfabetos funcionais8 – quer dizer, pessoas que, embora dominem as habilidades básicas do ler e do escrever, não são capazes de utilizar a escrita na leitura e na produção de textos na vida cotidiana ou na escola, para satisfazer às exigências do aprendizado.

Alfabetização no Brasil

Diante dos problemas educacionais, todos nós temos a tendência a acreditar que, em nosso tempo ou no tempo de nossos avós, as coisas eram melhores. As escolas alfabetizavam com sucesso, os professores eram mais qualificados, os alunos eram mais dispostos a aprender e mais disciplinados.
Diante dos difíceis momentos do presente, acreditamos que voltar ao passado seria uma boa solução. Mas, no caso da alfabetização, não vale a pena voltar ao passado. Boa parte dos problemas que enfrentamos hoje tem a ver justamente com esse passado.
Assim como Portugal, o Brasil, sua ex-colônia, pôs em prática um modo restrito ou gradual de difusão da alfabetização. Pouco antes da Independência, em 1820, apenas 0,20% da população, estima-se9, é alfabetizada. Assim, o ler e o escrever são privilégio das elites que, após esses primeiros aprendizados, dão continuidade a seus estudos.
Ao longo do século, porém, novas frações da população se alfabetizam, mas muito gradualmente. Em 1872, quando se realiza o primeiro Censo nacio­nal, o índice de alfabetizados é de apenas de 17,7% entre pessoas de cinco anos e mais. A partir do século XX, esse índice vai sempre progredir, embora permaneça, até 1960, inferior ao índice de analfabetos, que constituem 71,2% em 1920, 61,1% em 1940 e 57,1% em 1950. Em 1960, pela primeira vez, conseguimos inverter a proporção: contamos, então, com 46,7% de analfabetos. A partir de então, as taxas caem sucessivamente, de 1970 a 2000, para 38,7%, 31,9%, 24,2% e 16,7%10.
As mesmas desigualdades também se manifestam em matéria de escolarização: só no final da década passada, o País conseguiu universalizar o acesso à escola, embora em muitos estados persistam percentuais expressivos de crianças fora da escola.
Sabemos sobre que parcelas da população incidem o analfabetismo e o fracasso escolar. Sabemos que grupos sociais não têm acesso à escolarização. Os dados do SAEB são exemplares: o fracasso na alfabetização é maior entre as crianças que vivem em regiões que possuem piores indicadores sociais e econômicos; entre as crianças que trabalham, entre as crianças negras. Quer dizer, o problema do analfabetismo, na escola ou fora dela, é parte de um problema maior, de natureza política: o da desigualdade social, o da injustiça social, o da exclusão social.
Assim, as dificuldades que enfrentamos no presente não são, em certa medida, dificuldades novas. Fazem parte de uma dificuldade antiga e persistente em nosso País: a de assegurarmos a todos os brasileiros a igualdade de acesso a bens econômicos e culturais, neles compreendidos a alfabetização e o domínio da língua escrita.
Mas os mesmos dados que mostram a difícil herança que nos foi legada e as dimensões de nosso desafio mostram também que, ainda que muito lentamente, avançamos. Ao longo de todo o século passado, conseguimos incluir novas parcelas da população no mundo da escrita. Éramos cerca de 18% de alfabetizados, quase no final do século XIX; no início do século XXI, somos quase 83%.
Conseguimos, também, na década passada, reduzir os percentuais de analfabetismo entre crianças e jovens em idade escolar: as taxas de analfabetismo nas faixas etárias de 10 a 19 anos – relativas a crianças e jovens que estão ou estiveram na escola – apresentam uma redução expressiva nos últimos anos: entre 1996 e 2001, os percentuais de analfabetos nessa faixa de idade caem pela metade, isto é, de cerca de 14% para cerca de 7%11.
Mais importante, avançamos (mesmo que lentamente), ao mesmo tempo em que aumentamos nossas expectativas em relação à alfabetização, quer dizer, ao mesmo tempo em que progressivamente ampliamos o nosso conceito de alfabetização, em resposta a novos problemas, colocados pelo mundo contemporâneo.
O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa apresenta a definição estrita de alfabetização. Ela é o “ato ou efeito de alfabetizar, de ensinar as primeiras letras ”. Assim, uma pessoa alfabetizada é entendida como aquela que domina as “primeiras letras ”, que domina as habilidades básicas ou iniciais do ler e do escrever.

Um exemplo: você é capaz de ler global e instantaneamente (de uma só vez, sem analisar cada elemento) a primeira palavra ao lado porque é alfabetizado.
------------------------------------› CASA
Outro exemplo: você é capaz de decodificar, analisando seus elementos (letra, sílaba), a segunda palavra ao lado (embora ela não exista), porque você é alfabetizado.
------------------------------------› AVLATLONPLAN

Em síntese: alfabetização, em seu sentido estrito, designa, na leitura, a capacidade de decodificar os sinais gráficos, transformando-os em sons, e, na escrita, a capacidade de codificar os sons da língua, transformando-os em sinais gráficos.
Ao longo do século passado, porém, esse conceito de alfabetização foi sendo progressivamente ampliado, em razão de necessidades sociais e políticas, a ponto de já não se considerar alfabetizado aquele que apenas domina as habilidades de codificação e de decodificação, “mas aquele que sabe usar a leitura e a escrita para exercer uma prática social em que a escrita é necessária ”12.
Essa ampliação se manifesta, por exemplo, nos Censos (cujos dados utilizamos acima). Leia o texto abaixo, de Magda Soares, sobre como os Censos foram progressivamente ampliando seu conceito de alfabetização13:

A ressignificação do conceito de alfabetização nos Censos

(...) até os anos 40 do século passado, os questionários do Censo indagavam, simplesmente, se a pessoa sabia ler e escrever, servindo, como comprovação da resposta afirmativa ou negativa, a capacidade de assinatura do próprio nome. A partir dos anos 50 e até o último Censo (2000), os questionários passaram a indagar se a pessoa era capaz de “ler e escrever um bilhete simples ”, o que já evidencia uma ampliação do conceito de alfabetização: já não se considera alfabetizado aquele que apenas declara saber ler e escrever, genericamente, mas aquele que sabe usar a leitura e a escrita para exercer uma prática social em que a escrita é necessária.
Essa ampliação do conceito revela-se mais claramente em estudos censitários desenvolvidos a partir da última década, em que são definidos índices de alfabetizados funcionais (e a adoção dessa terminologia já indica um novo conceito que se acrescenta ao de alfabetizado, simplesmente), tomando como critério o nível de escolaridade atingido ou a conclusão de um determinado número de anos de estudo ou de uma determinada série (em geral, a 4ª série do Ensino Fundamental), o que traz, implícita, a idéia de que o acesso ao mundo da escrita exige habilidades para além do apenas aprender a ler e a escrever. Ou seja: a definição de índices de alfabetismo funcional utilizando-se, como critério, anos de escolaridade, evidencia o reconhecimento dos limites de uma avaliação censitária baseada apenas no conceito de alfabetização como “saber ler e escrever ” ou “saber ler um bilhete simples ”, e a emergência de um novo conceito, que incorpora habilidades de uso da leitura e da escrita desenvolvidas durante alguns anos de escolarização.
A ampliação do conceito de alfabetização se manifesta também na escola. Até muito recentemente, considerava-se que a entrada da criança no mundo da escrita se fazia apenas pela alfabetização, pelo aprendizado das “primeiras letras ”, pelo desenvolvimento das habilidades de codificação e de decodificação. O uso da língua escrita, em práticas sociais de leitura e produção de textos, seria uma etapa posterior à alfabetização, devendo ser desenvolvido nas séries seguintes.
Desde meados dos anos 80, porém, concepções psicológicas, lingüísticas e psicolingüísticas de leitura e escrita vêm mostrando que, se o aprendizado das relações entre as “letras ” e os sons da língua é uma condição do uso da língua escrita, esse uso também é uma condição da alfabetização ou do aprendizado das relações entre as “letras ”e os sons da língua.
Talvez essa idéia14 tenha-se manifestado, primeiramente, na defesa da criação, em sala de aula, de um ambiente alfabetizador.
Metodologicamente, a criação desse ambiente se concretizaria na busca de levar as crianças em fase de alfabetização a usar a língua escrita, mesmo antes de dominar as “primeiras letras ”, organizando a sala de aula com base na escrita (registro de rotinas, uso de etiquetas para organização do material, emprego de quadros para controlar a freqüência, por exemplo). Conceitualmente, a defesa da criação de um ambiente alfabetizador estaria baseada na constatação de que saber para que a escrita serve (suas funções de registro, de comunicação a distância, por exemplo) e saber como é usada em práticas sociais (organizar a sala de aula, fixar regras de comportamento na escola, por exemplo) auxiliariam a criança em sua alfabetização. Auxiliariam por dar significado e função à alfabetização; auxiliariam por criar a necessidade da alfabetização; auxiliariam, enfim, por favorecer a exploração, pela criança, do funcionamento da língua escrita.
A necessidade desse conhecimento sobre os usos e as funções da língua escrita seria particularmente relevante para crianças de famílias muito afastadas do mundo da escrita, que não teriam muitas oportunidades de manusear textos, de participar de situações de leitura e produção de textos, de, antes da escola, imergir na cultura escrita.
Assim, alfabetizar não se reduziria ao domínio das “primeiras letras ”. Envolveria também saber utilizar a língua escrita nas situações em que esta é necessária, lendo e produzindo textos. É para essa nova dimensão da entrada no mundo da escrita que se cunhou uma nova palavra: letramento15. Ela serve para designar o conjunto de conhecimentos, de atitudes e de capacidades necessários para usar a língua em práticas sociais.
Por meio desse conceito, a escola ampliou, assim, o seu conceito de alfabetização. O que boa parte dos dados do SAEB mostra é que muitas crianças, embora alfabetizadas, não são letradas (ou manifestam diferentes graus de analfabetismo funcional, já que os dois conceitos tendem a se sobrepor). Em outras palavras, não são capazes de utilizar a língua escrita em práticas sociais, particularmente naquelas que se dão na própria escola, no ensino e no aprendizado de diferentes conteúdos e habilidades.
Assim: as dificuldades que enfrentamos, hoje, na alfabetização, são agravadas tanto pelo passado (a herança do analfabetismo e das desigualdades sociais), quanto pelo presente (a ampliação do conceito de alfabetização e das expectativas da sociedade em relação a seus resultados).
O que fazer em resposta a essas dificuldades? A série Alfabetização, leitura e escrita, em seus diferentes programas, procura caracterizar os desafios da alfabetização e do letramento no país e, ainda, auxiliar os educadores na busca de respostas para esses desafios.

Notas:

1 Professor da Faculdade de Educação da UFMG. Diretor do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale). Consultor dessa série.
2 O caso de Débora baseia-se em diferentes casos reais de crianças com dificuldades no aprendizado da leitura e da escrita. Mas a maior parte das informações foi extraída de casos relatados e analisados pela professora Ana Maria Prado Barbosa. Ela atua como docente e como supervisora na rede de ensino do Estado.
3 Na primeira carta, o professor disse a Débora para desculpá-lo pela letra ruim. Foi por isso que ela respondeu que não era para se preocupar com a sua letra.
4 O conceito de alfabetizado funcionalmente é discutido mais à frente.
5 32 países participaram do PISA, dentre eles Coréia do Sul, Espanha, EUA, Federação Russa, França, México, Portugal e Brasil.
6 Qualidade da Educação: uma nova leitura do desempenho dos estudantes da 4a série do Ensino Fundamental. Brasília: MEC/INEP, abril 2003.
7 Trata-se do trabalho realizado por Alicia Bonamino, Carla Coscarelli e Creso Franco ("Avaliação e letramento: concepções de aluno letrado subjacentes ao SAEB e ao PISA". Educação e Sociedade, Campinas, vol. 23, n.81, p.91-113, dez. 2002). A comparação foi feita com os dados do SAEB 1999. As citações foram extraídas da página 103.
8 Aqui você encontra uma definição de analfabeto funcional. Essa definição é retomada mais à frente.
9 A estimativa é feita por Lawrence Hallewell (O livro no Brasil: sua história. São Paulo: Edusp, 1985, p.176).
10 Os dados ao lado são encontrados no artigo de Alceu Ravanello Ferraro ("Analfabetismo e níveis de letramento no Brasil: o que dizem os censos?". Educação e Sociedade, Campinas, vol.23, n.81, p.21-47, dez.2002).
11 Ver, a respeito, o Mapa do analfabetismo no Brasil. Brasília: INEP, 2003.
12 A definição entre aspas é de Magda Soares ("Alfabetização: a ressignificação do conceito". "Alfabetização e Cidadania". Revista de Educação de Jovens e Adultos. RaaB, n. 16, julho 2003, p.10-11).
13 O trecho foi extraído do mesmo artigo da educadora, citado acima. "Alfabetização: a ressignificação do conceito". Alfabetização e Cidadania. Revista de Educação de Jovens e Adultos. RaaB, n. 16, julho 2003, p.10-11.
14 Essa idéia se manifesta também em muitas outras práticas pedagógicas realizadas antes, durante e depois da alfabetização, como, por exemplo, a leitura em voz alta pelo professor, a redação de textos coletivos em que o docente serve de secretário ou escriba, o contato com textos que circulam na sociedade e não apenas com textos produzidos para a exploração das relações entre "letras" e "sons".
15 Aqui se aborda o conceito de letramento

SALTO PARA O FUTURO / TV ESCOLA
WWW.TVEBRASIL.COM.BR/SALTO

Prática Pedagógica - Programa 2

Programas da TV Cultura Brasil


Oralidade e escrita: dificuldades de ensino-aprendizagem na alfabetização

MARIA LUCIA CASTANHEIRA1
ANA LYDIA SANTIAGO2


Fracasso escolar: buscando explicações para as dificuldades de ensino-aprendizagem na alfabetização


Uma das explicações dadas para o fracasso da alfabetização no Brasil é a de que a democratização do acesso à escola, ocorrida a partir dos anos 70, levou a escola a lidar com crianças que teriam, em razão de suas condições de vida, sérias deficiências culturais e lingüísticas, que acarretariam dificuldades de aprendizagem. Considerava-se que essas crianças, de um modo geral, apresentavam problemas de indisciplina e não valorizavam a escola. Além disso, sua linguagem oral seria muito distante da língua escrita e, em seu ambiente familiar, elas não tinham oportunidade de vivenciar os usos da escrita nem de conviver com pessoas que valorizassem o aprendizado da escrita.
De fato, os dados estatísticos (os do SAEB dentre eles) mostram que o chamado fracasso escolar tende a se concentrar nas crianças oriundas de meios menos favorecidos economicamente. No entanto, diferentes estudos mostram também que, ao contrário do que em geral se afirma, essas crianças possuem um adequado desenvolvimento cultural e lingüístico e que é a escola que apresenta sérias dificuldades para lidar com a diversidade cultural, lingüística e mesmo étnica da população brasileira.
Este programa tematiza justamente o fracasso da alfabetização de crianças de meios menos favorecidos economicamente. Seus principais objetivos são:
* discutir as diferentes explicações para esse fracasso;
* mostrar que, mesmo experimentando difíceis condições de existência, essas crianças apresentam um adequado desenvolvimento cultural e lingüístico.


Uma reflexão sobre diferentes explicações para o fracasso escolar

Possivelmente, você já se deparou em sua escola, em sua sala de aula, com crianças que apresentam os chamados "problemas de aprendizagem", particularmente, na aquisição da leitura e da escrita. Com certeza, essas crianças não são os únicos casos de "crianças problemas3" existentes por aí: as crianças que estão diante de nós não estão sozinhas – na minha escola, na sua escola, na escola vizinha, naquela escola lá do outro lado da cidade e ainda na escola vizinha dessa escola – encontramos inúmeras crianças que não estão tendo sucesso, que fracassam em seu aprendizado. Por vezes, essas crianças passam anos freqüentando a escola, até que um dia desistem, "entendem" que não têm "cabeça para o estudo" ou simplesmente vão "cuidar da vida e trabalhar", "fazer um bico e arranjar uns trocados para ajudar em casa".
Assim como o problema de crianças que fracassam na escola não acontece apenas em sua escola, professor, ele também não é um problema que surgiu somente agora, nos dias atuais. Pelo contrário, esse é um problema cuja história se inicia com a própria história da escolarização pública. Com a institucionalização do ensino obrigatório, surgem tanto histórias de sucesso de alguns, como histórias de fracasso de muitos outros. Observe, por exemplo, as expressões que, ao longo dos anos, foram sendo atribuídas aos alunos que, por diferentes motivos, não obtêm sucesso nos seus primeiros anos de escolarização: "débil, deficiente mental educável, anti-intelectual, criança com desvio de conduta, criança lenta, criança com repertório comportamental limitado, criança com distúrbios de desenvolvimento, criança com distúrbios de aprendizagem, carente lingüístico, carente cultural, criança com pobreza vocabular, com atraso de maturação, com distúrbio psicomotor, com problemas de socialização, hiperativa, disléxica, portadora de necessidades espe­ciais" (Griffo, 1996).
É evidente que tais nomeações não surgem ao acaso. Elas expressam diferentes perspectivas de entendimento das causas do fracasso escolar ao longo da história.
Nas últimas décadas do século passado, várias hipóteses causais foram apresentadas como explicação para o fracasso escolar, dando origem à consolidação de quatro diferentes abordagens para interpretação desse fenômeno: Organicista, Instrumental Cognitivista, Questionamento da Escola, Handicap Sociocultural. Essas abordagens organizam-se em torno de questões, hipóteses explicativas e metodologias de pesquisa que orientam os profissionais de diversas áreas – médicos, professores, supervisores, psicólogos, etc. – em seu processo de estudo e intervenção junto a crianças com problemas de aprendizagem. Apresentamos, a seguir, uma breve caracterização de cada uma dessas abordagens.
A primeira teorização sobre as dificuldades de aprendizagem surgiu na França, no final do século XIX, e ficou conhecida como Abordagem Organicista (Fijalkow, 1989), por investigar as causas do fracasso escolar levantando hipóteses sobre os possíveis distúrbios e doenças neurológicas do aluno. As pesquisas realizadas nessa linha de investigação promoveram uma verdadeira classificação médica dos problemas de aprendizagem. Nos dias de hoje, quando se encaminha um aluno para uma avaliação neurológica, buscando apoio na contribuição da medicina para a compreensão das dificuldades de aprendizagem, o resultado do diagnóstico aponta, geralmente, como causa do problema do escolar um quadro de dislexia, disfunção cerebral mínima (DCM) ou hiperatividade.
Moysés e Collares chamam nossa atenção para a necessidade de se fazer distinção entre a dislexia – quadro conhecido em neurologia, em que a perda do domínio da linguagem escrita pode ocorrer em conseqüência de seqüela (temporária ou definitiva) de uma patologia do sistema nervoso central – e a dislexia específica de evolução – nome da entidade patológica que foi empregada no campo de estudos dos problemas de aprendizagem da leitura e da escrita. Segundo essas autoras, a dislexia específica de evolução foi "inventada" a partir da suposição de que, se alguém que já sabe ler e escrever perde a capacidade de fazê-lo em função de uma patologia do sistema nervoso central, então, crianças que têm dificuldade em aprender ou não aprendem a ler e a escrever, possivelmente, deverão ter alguma patologia dessa ordem. Assim, a partir dessa idéia, uma das perguntas que orientou as pesquisas nessa área passou a ser: "se uma doença neurológica pode comprometer o domínio da linguagem escrita, será que a criança que não aprende a ler e escrever teria uma 'doença neurológica'?" Como você pode perceber, o conceito de "Dislexia Específica de Evolução" é proposto com base na transposição de um tipo de raciocínio, perfeitamente aplicável na área médica, para a área educacional. Porém, a pertinência dessa transposição precisa ser examinada com cuidado.
Valendo-se desse mesmo tipo de raciocínio, Strauss, um neurologista americano, lançou, em 1918, a hipótese segundo a qual os distúrbios de comportamento dos escolares e também alguns dos distúrbios de aprendizagem poderiam ser conseqüência de uma lesão cerebral mínima. Ou seja, tais distúrbios seriam em decorrência de uma lesão, suficiente para alterar o comportamento e/ou alguma função intelectual, mas mínima o bastante a ponto de não ocasionar outras manifestações neurológicas. Essa hipótese de Strauss não foi acolhida no meio científico nem divulgada, naquela época, para a sociedade. Contudo, alguns anos mais tarde, em 1957, a lesão cerebral mínima ressurge na medicina, como equivalente à síndrome hipercinética ou hiperatividade. Em 1962, durante um simpósio internacional, realizado em Oxford, com a participação de grupos de pesquisa dedicados ao estudo da lesão cerebral mínima, chegou-se à conclusão de que não havia nenhuma lesão. Vários métodos de investigação foram utilizados e não se conseguiu detectar nenhuma lesão. Os pesquisadores admitiram o erro e, para corrigi-lo, renomearam o quadro, passando a chamá-lo de disfunção cerebral mínima (DCM). A descrição das manifestações clínicas dessa nova entidade foi ampliada: hiperatividade, agressividade, distúrbio de aprendizagem, déficit de concentração, instabilidade de humor, baixa tolerância a frustrações, para citar apenas as mais divulgadas.
Várias críticas são apresentadas, atualmente, a essa abordagem do fracasso escolar e das dificuldades de aprendizagem. A abordagem Organicista é sempre citada como a grande responsável pela medicalização generalizada do fracasso escolar, pois o tratamento proposto para sanar as dificuldades de aprendizagem da criança é o uso de remédios psiquiátricos. Uma das conseqüências mais indesejada da utilização dessa abordagem é a identificação do aluno como alguém que possui uma falha orgânica, ou seja, um déficit neurológico. Ao se empregar termos como "Dislexia", "Hiperatividade" e "Disfunção Cerebral Mínima", tende-se a ver o(a) aluno(a) como o(a) "único(a) responsável" pelo seu próprio fracasso. Como conse­qüência, limita-se, assim, o campo de investigação do fracasso escolar, uma vez que outros fatores intervenientes na produção desse fenômeno são desconsiderados. A "facilidade" com que esse diagnóstico é utilizado nas escolas cria um quadro de encaminhamento para atendimento médico e prescrição medicamentosa, levando à biologização de um fenômeno da esfera escolar, produzindo gerações que acabam por se tornar conhecidas como "geração comital ou gardenal" (Vidal, 1990; Cypel, 1993).
A segunda abordagem do fenômeno do fracasso escolar surgiu a partir do desenvolvimento de pesquisas no campo da psicologia cognitiva. Trata-se da Abordagem Instrumental Cognitivista, assim designada por buscar as causas das dificuldades de aprendizagem em possíveis disfunções relativas a um dos quatro processos psicológicos fundamentais: a percepção, a memória, a linguagem e o pensamento. Segundo Sena (1999), o diagnóstico realizado utiliza-se basicamente do processo de investigação diferencial (comparando um grupo considerado normal a outro considerado atrasado) e busca identificar os seguintes sintomas: a desorganização espaço-temporal, os transtornos de lateralização, o desenvolvimento inadequado da linguagem, os transtornos perceptivos visuais e auditivos, os déficits de atenção seletiva, os problemas de memória. Fijalkow (1989), Nunes, Buarque e Bryant (1992) analisam um grande conjunto de pesquisas desenvolvidas a partir dessa perspectiva e apontam alguns problemas que precisam ser considerados ao interpretar os resultados das mesmas. Um desses problemas diz respeito, por exemplo, à não-neutralidade e à não-objetividade das situações de teste a que as crianças são submetidas, em decorrência da dificuldade de se isolar variáveis para que essas possam ser testadas independentemente uma das outras. Além disso, deve-se considerar que a abordagem cognitivista, como a abordagem organicista, procura as causas do fracasso das crianças apenas nas características individuais, desconsiderando possibilidades explicativas em outras esferas.
A Abordagem Afetiva caracteriza-se por privilegiar como explicação causal do fracasso escolar os transtornos afetivos da personalidade. Partidários dessa abordagem defendem a idéia de que as causas das dificuldades de aprendizagem devem ser buscadas em perturbações no estado socioafetivo da criança e não em supostos problemas neurológicos ou cognitivos. Nessa perspectiva, o atraso do aluno é uma manifestação de suas dificuldades originadas de algum conflito emocional (consciente ou inconsciente), cuja origem encontra-se na dinâmica familiar. Por meio da utilização do método clínico, propõe-se, primeiro, investigar se a dificuldade é de fato um problema de ordem pedagógica ou psicológica, para, posteriormente, buscar compreender porque uma determinada criança elege um determinado sintoma e não outro como expressão de suas dificuldades emocionais. Uma das críticas feitas a essa abordagem decorre do fato de que essa acaba por dar subsídios para que se responsabilize a criança e sua família por dificuldades que surgem na esfera escolar, transferindo para fora da escola – para as famílias, para as clínicas – a busca de soluções para os problemas da criança.
A abordagem denominada Questionamento da Escola reúne estudos que investigam diferentes fatores escolares como intervenientes na produção do fracasso dos alunos; dentre esses se destacam, por exemplo: a inadequação dos métodos pedagógicos, as dificuldades na relação professor-aluno, a precária formação do professor, a falta de infra-estrutura das escolas da rede pública de ensino. Segundo Sena (1999), "deslocando a questão do aluno que não aprende para a escola que não ensina" seguidores dessa abordagem propõem modificações na estrutura e organização da escola, a fim de que essa instituição cumpra seu papel social.
A abordagem do Handicap Sociocultural identifica no meio sociofamiliar a origem do fracasso das crianças na escola. Adeptos dessa abordagem consideram a bagagem sociocultural dos alunos e de seus familiares um fator decisivo, tendo em vista que a maioria dos alunos que fracassam na escola é oriunda das camadas populares. Um argumento central na articulação dessa abordagem é que essas crianças apresentam uma linguagem deficitária o que, em conseqüência, implicaria déficit cognitivo. Segundo Soares (1987), teorias do déficit cultural, lingüístico e cognitivo ocultam a verdadeira causa da discriminação das crianças das camadas populares na escola – a desigual distribuição de riqueza numa sociedade capitalista – e terminam por responsabilizar as crianças e suas famílias por suas dificuldades e isentar de responsabilidade a escola e a sociedade. De acordo com Sena (1999), "apesar do número significativo de pesquisas comprovando o caráter ideológico do discurso que fundamenta essa abordagem, ainda hoje podemos constatar como seus pressupostos estão presentes e influenciam fortemente a opinião dos profissionais da educação" sobre possíveis causas do fracasso escolar.

Elementos para o questionamento de teorias do déficit

A breve caracterização das diferentes abordagens do fracasso escolar, apresentada acima, permite constatar que os considerados fracassados são situados em uma mera posição de objeto do conhecimento, marcados por um processo diagnóstico que, embora oscile entre oferecer como explicação causal do fracasso escolar ora uma disfunção neurológica ou cognitiva, ora um transtorno afetivo, ora problemas lingüísticos, não vacila em apontar esses sujeitos como deficitários (Santiago, 2000).
Um mito se faz especialmente presente na escola em relação às crianças das camadas populares: o mito da existência de um déficit lingüístico e cultural por parte dessas crianças e de seus familiares. Soares (1987) explica que o mito da deficiência lingüística e cultural baseia-se na suposição de que:
"(...) as crianças das camadas populares chegam à escola com uma linguagem deficiente, que as impede de obter sucesso nas atividades e aprendizagem: sua linguagem é pobre - não sabem o nome de objetos comuns; usam frases incompletas, curtas, monossilábicas; sua sintaxe é confusa e inadequada à expressão do pensamento lógico; cometem 'erros' de concordância, de regência, de pronúncia; comunicam-se muito mais através de recursos não verbais do que de recursos verbais. Em síntese são crianças deficitárias lingüisticamente"(Soares, 1987, p. 20).
Essa suposta deficiência lingüística seria atribuída à "pobreza" do contexto lingüístico familiar em que vive a criança. Adeptos dessa abordagem associam a essa visão de um contexto familiar deficiente lingüística e culturalmente a idéia de que os familiares dessas crianças (seus pais ou responsáveis) não demonstrariam interesse por seu desenvolvimento escolar e não se empenhariam em dar suporte para que essas crianças tenham condições de aprender na escola.
Diversas pesquisas, desenvolvidas a partir dos anos 70, fornecem elementos para se refutar a hipótese do déficit como causa do fracasso escolar. O trabalho de Labov (Soares, 1987), por exemplo, forneceu elementos para o questionamento das situações de teste a que crianças negras, moradoras de guetos em grandes cidades americanas, eram submetidas. Segundo ele, a artificialidade, bem como a diferença de classes do entrevistador e dos entrevistados, comprometeriam o desempenho dessas crianças, levando-as a se mostrarem desarticuladas e monossilábicas nas situações de entrevista. A análise da produção lingüística dessas crianças em interação com seus pares ou em entrevistas feitas por pessoas do seu próprio grupo social revelou que elas possuíam uma gramática sistemática, coerente e lógica. Segundo Soares, Labov adotaria uma posição contrária à dos partidários da teoria do déficit lingüístico. Para ele, crianças das camadas populares "narram, raciocinam e discutem com muito mais eficiência que os falantes pertencentes às classes mais favorecidas, que contemporizam, qualificam, perdem-se num excesso de detalhes irrelevantes" (Soares, 1987, p.47).
Segundo estudos sobre a relação entre linguagem, cultura e escolarização (Cook-Gumperz e Gumperz, 1992; Oliveira e Nascimento, 1990) que levam em conta a existência de diferenças lingüísticas e culturais entre crianças das camadas populares, minorias étnicas e crianças das camadas economicamente favorecidas da população, o fato de a escola não estar preparada para lidar com essas diferenças seria um dos principais fatores que contribuíram para a produção do fracasso escolar. Outros estudos (Fijalkow, 1989) apresentam evidências contrárias à idéia de que existe desinteresse por parte dos familiares das crianças das camadas populares em relação à sua carreira escolar, pois para essas famílias o sucesso na escola representaria a possibilidade de um futuro melhor para seus filhos. Estudos desenvolvidos por Griffo (1996) e Costa (1993) demonstraram o empenho dos familiares em contribuir para a reversão da situação de fracasso em que seus filhos se encontravam. Castanheira (1991) apresenta análise de como crianças das camadas populares, moradoras de um bairro da periferia de Belo Horizonte, eram preparadas para o ingresso na 1ª série por seus pais ou por seus irmãos mais velhos. As interações dessas crianças com a escrita criavam oportunidades de um contato cotidiano com esse objeto do conhecimento, fosse em brincadeiras de ruas, de aulinhas com amigos ou atividades orientadas por seus pais ou irmãos mais velhos. Essas experiências com a escrita preparavam essas crianças para o seu ingresso na escola em melhores condições para aquisição da leitura e da escrita. Em muitos casos, ao preparo e envolvimento da criança com a escrita antes de seu ingresso na escola de 1º grau não se seguiria uma continuidade do ensino de forma adequada dentro dessa instituição.
Estudos desenvolvidos por Bernard Lahire sobre sucesso escolar nos meios populares, na França, acrescentam diversos elementos a essa discussão, ao apresentar detalhes das diversas formas utilizadas por essas famílias como suporte para que seus filhos pudessem ser bem-sucedidos na escola. Essas formas de suporte variam de família para família e incluem desde a preocupação em garantir que as crianças tenham livros de referência para consulta na hora dos estudos em casa, como atitudes persuasivas como conversas ou mesmo castigos. Os dados analisados por Lahire (1997) levam também à conclusão de que não existe uma relação causal direta entre o sucesso escolar e empenho das famílias em acompanhar os filhos em suas atividades escolares. Observou-se que, em alguns casos, a intervenção familiar, embora positiva, tem efeito limitado sobre a aprendizagem do aluno, como, por exemplo, quando se garante a posse de livros de referência, mas esses não são efetivamente utilizados pelos adultos da família. Além disso, demonstrou-se que as diferentes atitudes tomadas pelas famílias não são valorizadas da mesma forma nas diversas escolas onde esses alunos são atendidos.

À guisa de conclusão

Como podemos ver a partir do que foi exposto acima, temos disponíveis diversas possibilidades explicativas para o fracasso escolar e as dificuldades que surgem no processo de ensino-aprendizagem. Resta-nos, então, o desafio de buscar mais elementos para que possamos nos posicionar diante dos casos presentes em nossas salas de aula, em nossas escolas. Estudos como os mencionados acima indicam a necessidade de que busquemos conhecer e respeitar as diferenças culturais e lingüísticas apresentadas por nossos alunos e exercitar a nossa compreensão sobre as implicações dessas diferenças nas produções orais e escritas das crianças e jovens dentro da escola. A existência dessas diversas possibilidades explicativas para o fracasso escolar indica a necessidade de sermos cautelosos ao "diagnosticar" as "dificuldades" e os "problemas" apresentados pelos alunos – não existe uma explicação única para todos os casos, cada caso tem sua história e é necessário intervir examinando que conse­qüências essa intervenção trará para a vida dos nossos alunos.


Referências Bibliográficas

CASTANHEIRA, M. L. Da escrita no cotidiano à escrita escolar. Revista Leitura: Teoria e Prática, 20. Campinas: ABL, 1991. P. 35-42.
COOK-GUMPERZ e GUMPERZ. Cook-Gumperz and Gumperz, 1992: Changing views of language in Education: the implications for literacy research. In: Beach R. et al.(eds.). Multidisciplinary Perspectives on Literacy Research. Urbana, Illinois: NCRE/ NCTE, 1992.
COLLARES, C. A., MOYSÉS, M. A. A história não contada dos distúrbios de aprendizagem. Cadernos Cedes, 28. São Paulo: Papirus. P. 31-48.
COSTA, Dóris Anita Freire. Fracasso Escolar: diferença ou deficiência. Porto Alegre: ed. Quarup, 1993.
CYPEL, Saul. O aprendizado escolar: reflexões sobre alguns aspectos neurológicos. Revista FDE, 19. São Paulo, 1993.
FIJALKOW, J. Malos Lectores: por qué? Madri: Piramide, 1989.
GRIFO, Clenice. Dificuldades de aprendizagem na alfabetização: perspectivas do aprendiz. Centro de Referência do Professor: Séries Cadernos do Professor e Programa da Pós-Graduação da FAE/UFMG, 1996.
LAHIRE, B. Sucesso escolar nos meios populares - as razões do improvável. São Paulo: Ática. 1997.
NUNES, T, BUARQUE, L. e BRYANT, P. Dificuldades na aprendizagem da leitura. São Paulo: Cortez Editora/Autores Associados, 1992. P. 13-31.
OLIVEIRA, Marco Antônio e NASCIMENTO, Milton do. Da análise de "erros" aos mecanismos envolvidos na aprendizagem da escrita. Educação em Revista : 12 (33-43), Belo Horizonte, 1990.
SANTIAGO, Ana Lydia B. A inibição intelectual na Psicanálise. Tese de Doutorado. São Paulo, Instituto de Psicologia Clínica da USP, 2000.
SENA, Maria das Graças de Castro. Dispositivo , 1. Belo Horizonte: Clínica d'Iss, 1999. P. 73-78.
SOARES, Magda B. Linguagem e Escola- uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1987.
VIDAL, G. Falso mal: Médico denuncia a farsa da disritimia. Isto é / Senhor , n. 1.070, 21 de março, 1990.
Notas:

1. Professora da Faculdade de Educação da UFMG. Pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) e do CNPq.
2. Psicanalista, professora da Faculdade de Educação da UFMG. Pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale).
3. Expressão típica dos anos 30, presente nas publicações que localizam as causas das dificuldades nos instrumentos da psicologia clínica e que buscam no ambiente sociofamiliar as causas dos desajustes e problemas vivenciados pelo aprendiz.

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